Enquanto sobreviver
A memória do que fui,
Eu estarei por aqui.
Por isso, escrevo,
Todos os dias,
Para abrasá-la,
Para me ancorar em mim.
Quando as vistas e as mãos
Fraquejarem
Impedindo o registro de mim,
Estarei morto de vez
(e elas já começam a dar sinais claros de cansaço, mais de tédio, até).
Ao corpo,
Que anda, respira, tem febre e caga,
Que anda, respira, tem febre e caga,
Não desperdicem grandes cerimônias.
Uma vala comum qualquer está de boa medida
(a parte que me cabe neste latifúndio).
Aos meus escritos - meu verdadeiro arcabouço -,
Destinem ritos e pompas,
Cremem-os solenemente.
Não poupem da combustão
Única folha ou linha.
E esses meus restos,
Semeiem num brejo, num charco
Sem lúmen nem clorofila,
Sem a menor chance de germinação;
Essa minha fuligem,
Assoprem num pântano umbroso,
Que dos holofotes das estrelas
Não quero nem o pó.
*a parte que te cabe neste latifúndio é um verso da obra Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto
**foi noticiado esta semana que o escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez está com demência senil.
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