Eu Sou Um Monge Shaolin

Somos bichos, que fugimos da Mãe Natureza, que rejeitamos seu exigente e austero colo e refestelamo-nos nas tetas e no entreperna permissivos de nossas civilizações, de nossas artificialidades.
Como justa punição, perdemos tudo o que nossa espécie levou milhares de anos para aprimorar e incorporar ao patrimônio genético, perdemos - e a cada dia mais - nossas diretrizes básicas, nossos instintos de sobrevivência.
Um reles vira-lata sarnento é muito mais rápido, feroz, ágil e apto a lutar do que a grande maioria de nós; até a sarna do vira-lata é mais apta.
Sabendo disso (ainda que inconscientemente), alguns tentam um retorno à casa abandonada, voltam-se para a natureza, a contemplá-la, a observarem em reverência seus outros animais e seus elementos, o vento, a água, o fogo, na tentativa de resgatar o conhecimento perdido, os instintos fundamentais, a têmpera da espécie por excelência.
O exemplo mais bem acabado que conheço disso são os monges Shaolin. Eles desenvolveram o milenar e lendário estilo Shaolin de kung fu, todo fundamentado no movimento de diversos animais.
O kung fu Shaolin é muito mais que uma simples técnica marcial, muito mais que meramente reproduzir os movimentos do tigre, da garça, da serpente, da águia ou do louva-a-deus (só para citar algumas de suas modalidades) para pôr o inimigo a nocaute, ou a correr.
Os mesmos exercícios de combate que mantêm o lutador Shaolin vivo em uma situação de emergência, permitem-lhe, em tempos de paz, ser uma pessoa equilibrada, centrada, de corpo e mente saudáveis e em sincronia. O kung fu Shaolin é luta, e é terapêutica.
Adepto que sou da filosofia Shaolin (ao menos em teoria), coloquei-a em prática ontem, num dos ambientes mais hostis do convívio humano : os supermercados.
Alguns dos espécimes mais perigosos e desprezíveis da extensa e variada fauna humana estão nos supermercados, pálidos e tristes simulacros de nossos campos de caça e de coleta ancestrais.
Desses, um dos mais odiosos é o sujeito que não guarda a menor distância da pessoa à sua frente na fila - seja na fila do caixa, na do açougue, na do hortifruti etc -, é o idiota que não sabe manter aquele espaço minimamente cortês, salutar e, diria até, heterossexual de quem o antecede na espera.
A fila anda um passo, o idiota anda dois, e, invariavelmente, abalroa o tornozelo de quem está à sua frente com o carrinho de compras.
Quando isso me acontece, costumo relevar a primeira pancada, finjo que não senti; na segunda, uso minha técnica da cara feia - que nem é uma técnica, uma vez que não foi aprendida nem desenvolvida, nasci com ela -, viro-me para o sujeito e o miro com um misto de raiva contida, enfado e desdém.
Estava, ontem, na fila do balcão de frios (já de saco cheio de tantas "duzentas" gramas disso, "quatrocentas" daquilo ) quando senti a primeira cutucada no tornozelo, ignorei-a, como de costume. Mais uma andada da fila e veio a segunda.
Virei o rosto, já pronto a encarar a pessoa, de cima para baixo, do alto dos meus 1,82m de estatura. Dei de cara, contudo, com um pescoço, uma traqueia, um pomo-de-adão, a cara do indivíduo estava ainda a uns bons centímetros acima, era um gigante, usava uma camisa do São Paulo Futebol Clube, era um viadão dos bitelos, praticamente um alce. 
Recuei, a técnica da cara feia seria de uma inocuidade patética.
Logo - eu sabia - viria a terceira pancada, a quarta, e muitas outras subsequentes, a fila estava grande. Algo precisava ser feito - eu precisava fazer - para evitar a humilhação silenciosa.
Todas as técnicas Shaolin me passaram pela cabeça, o zoológico marcial completo. Nenhuma conhecida seria de alguma eficiência frente ao grandão, que visivelmente dominava a máxima técnica Shaolin, o estilo rinoceronte rex.
Respirei fundo, concentrei-me, interiorizei-me, alinhei meus chacras. Contraí levemente a musculatura do baixo abdômen, região dos intestinos, e, auxiliado pelo almoço farto em feijão com pimenta comari, soltei um discreto peido, uma bufa.
Daqueles peidos silenciosos, quentes e densos. Daqueles que vão subindo lentamente pelo ar e, a uma certa altura, expandem-se e descem sobre as azaradas cabeças ao seu redor, feito um cogumelo atômico.
O efeito foi imediato. Em poucos segundos, o grandalhão se afastou. Recuou não um passo, mas três, pisou no pé de quem estava atrás dele, e não mais se aproximou. Esperei minha vez em total segurança daí para frente.
Eu havia inaugurado uma nova modalidade do kung fu Shaolin, o estilo do gambá. Declaro-me, desde já, o fundador do estilo Shaolin do gambá, e também o seu Mestre Zen Supremo. 
Os que vierem depois de mim, os que me seguirem, os que fizerem do meu estilo a sua doutrina filosófica de vida, serão meros peidorreiros.
Saí do supermercado e caminhei tranquilo e vingado de volta à casa, sereno como um monge tibetano. Jamais havia me sentido tão integrado à natureza e ao Cosmos como então.
Impávido como Muhammad Ali, tranquilo e infalível como Bruce Lee.

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1 Comentários

  1. kkkkkkkkkkkkkkkk.
    Muito bom Marreta. Porra! Só por causa que o mano tava com a camisa do São Paulo era bichona? Ele poderia conhecer a técnica do viado. E aí? Mas mesmo assim, ótimo o texto...
    Abraços

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