Saia do Meu Caminho, Eu Prefiro Andar Sozinho...

Não sei se acontece com vocês, de "conhecerem" pessoas das quais nem sabem os nomes e nem elas o seu. Pessoas que, por trabalharem e/ou residirem em nossa circunvizinhança e terem rotinas e horários parecidos aos nossos, encontramos amiúde pelas ruas, nas esquinas, nos mercados, padarias, quitandas. Viramos uma rua e a pessoa está lá, vamos passar num caixa do mercado e ó lá ela, saímos para dar uma caminhada e pimba. Já tive, ao longo da vida, em cada lugar em que residi, alguns desses conhecidos dos quais não sei nada, dessas amizades moradoras de rua.
Atualmente, tenho duas delas.

A mais antiga, um rapaz que é padeiro/confeiteiro de uma panificadora tradicional aqui do bairro. Rapaz é modo de dizer, creio que ele conte com uns 40, 45 anos hoje em dia. Não me lembro de onde travei contato com ele pela primeira vez nem quem puxou conversa com quem nem o assunto abordado. Ele me chama de "professor" e eu não o chamo de nada. Quando nos encontramos e ele fala, ô, professor, eu só respondo, e aí, beleza?
 
De mim, ele sabe, claro, que sou/fui professor, que sou casado e também conhece meu filho, de quando esse, ainda pequeno, andava comigo pra cima e para baixo; hoje, prefere ficar em casa, vidrado na merda de alguma tela.
 
Dele, sei que trabalha na tal padaria, que é fã de cult movies, apreciador de jazz, dos poetas concretos, que é egresso da cidade de São Paulo, onde viveu muito a cena underground em sua juventude. O que um cara desse veio fazer num fim de mundo provinciano feito Ribeirão Preto, até hoje eu não sei. Já pensei algumas vezes em lhe perguntar, mas contive a curiosidade, a qual, não acredito, como dizem, mate o gato, mas que, certamente, cria intimidades desnecessárias.
 
Assim como eu, resistiu por muito tempo em possuir um telefone celular. Adquiriu o dele mais ou menos na mesma época em que eu, inícios da saudosa pandemia do vírus chinês, ainda que por motivo muito diverso do meu.
 
O meu, fui obrigado a ter por conta do trabalho à distância e das plataformas digitais implementadas pelo estado de SP para atividade remota de alunos e professores; o dele, porque caiu de amores por uma sapatão, que, com a pandemia, voltou à sua cidade natal. Muito mais louvável, o motivo dele. Comezinho e covarde, o meu.
Quando nos encontramos, ele fala de filmes, de livros que leu, de política. Devo ter topado com ele há umas três semanas.
 
A outra amizade moradora de rua, essa apenas um pouco mais recente, é com um sujeito que trabalha numa autarquia de saneamento básico. Também não me recordo de nosso primeiro entrevero, quem falou inicialmente com quem etc. De mim, ele sabe o mesmo que o da padaria. Dele, sei em que trabalha, que é de Santos, cidade do litoral paulista, que para lá pretende voltar, quando se aposentar dentro em breve, e que é budista.
 
Até me presenteou certa vez com um cartão do templo que frequenta, ilustrado com uma flor de lótus na frente e um mantra no verso. Orientou-me a recitar o tal mantra sempre que algo me afligisse. O cartão, guardo comigo até hoje, em alguma gaveta, mas o mantra, jamais recitei. Vai além do que eu acredito; ou, no caso, além do que eu não acredito. 
 
E é esse que vem sendo um "problema" nas últimas semanas.
 
Pela manhã, saio com meu filho, desço uns seis quarteirões, dobro à esquerda numa esquina e o deixo na porta da escola, de onde, desço mais meio quarteirão, dobro à direita e sigo para o meu trabalho.
 
Costumávamos sair de casa por volta das 06h40, e tudo correu sempre bem. Porém, de duas ou três semanas para cá, por alguma razão, meu filho disse que dava pra sair um pouco mais tarde e passamos a sair às 06h50.
 
Pois bastaram esses 10 minutos fatais para sincronizar meu caminho com o do sujeito, que também vai a pé para o trabalho e cujo trajeto é coincidente com o meu em grande parte. Passei a encontrá-lo, no mínimo, duas ou três vezes por semana. Pior : ao invés de ser aquele papo rápido de esquina, passou a ser conversa de uns tantos e longos quarteirões.
 
Gosto de caminhar sozinho, sobretudo pela manhã. Ao longo dos quase quatro quilômetros de caminhada, ponho meus pensamentos em ordem, organizo como será o meu dia, repasso mentalmente todas as minhas tarefas e responsabilidades. Encontrar com o sujeito, tem sido uma aporrinhação.
 
Nesta semana, encontrei com ele na segunda e na terça feira. Hoje, quarta-feira, resolvi mudar minha rota. Ao invés de dobrar a esquina, descer com meu filho até a porta de sua escola, descer mais um tanto e dobrar à direita, hoje, parei na esquina de cima, fiquei apenas olhando meu filho descer e entrar na escola e segui reto, por um caminho que, depois de atravessar uma grande avenida, desemboca em travessas e ruas quase que sem saída, um contorno, um desvio de rota, sem prejuízo de tempo.
E deu certo. Nem sombra do cara por hoje. A estratégia funcionou.
 
Sorte? Só se ela resolveu me sorrir agora, depois de quase 60 anos de existência.
 

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5 Comentários

  1. Ainda bem que você conseguiu se livrar desse cara mala ao mudar o percurso.

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  2. "hoje, prefere ficar em casa, vidrado na merda de alguma tela"
    Olha, Marreta, os tempos mudaram. Pelo menos ele está seguro em casa.

    "e um mantra no verso"
    Azar. Sorte seria no verso estivesse escrito "fidelio". Seria então o convite para uma suruba (v. De olhos bem fechados).

    Abraços!

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    1. Rapaz, bom saber desse código. Não que eu vá receber um algum dia, mas vai quê...

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