O chargista - o bom chargista, claro - é um sujeito dotado de incríveis poderes de síntese e concisão. É capaz de ser sucinto e abrangente ao mesmo tempo. Eu, que falo, falo, e não falo porra nenhuma, morro de inveja desses caras.
Elevando à enésima potência a máxima de que "uma imagem vale mais do que mil palavras", eles, normalmente, em três quadrinhos sequenciais de uma tirinha de jornal, conseguem imprimir uma carga e um conteúdo que outros, mais falastrões e verborrágicos, talvez não tão bem colocassem em milhares e milhares de fotogramas de uma película cinematográfica.
Na verdade, às vezes, quando têm lampejos de genuína genialidade, nem mesmo dos tradicionais três quadrinhos sequenciais, eles precisam. Em felizes e aventuradas vezes, um único lhes basta.
Como é o caso da tirinha abaixo, do chargista e cartunista Caco Galhardo, que nem chega a ser um de meus prediletos, mas que, nesse caso, acertou-me diretamente na linha de cintura, no fígado, e na ponta do queixo depois, com um cruzado de direita.
A tirinha é antiga, 2012 ou 2013, mas longe de ser datada, no sentido de obsoleta ou anacrônica. Pelo contrária, ela tem um caráter atemporal. Li a tirinha no meu então local de trabalho, quando as escolas ainda mantinham assinaturas de jornais impressos, a Folha de São Paulo, no caso.
Não tive dúvidas : surrupiei-a.
Depois, ela sumiu. Perdi-a. Tentei recuperá-la pela internet algumas vezes. Sempre fracassei. Porém, de tempos em tempos, a lembrança dela se fazia recorrente em minha cabeça.
Hoje, pouco antes de sair para o trabalho, fui à estante à cata de um livro que pudesse deixar para o meu filho, já em período de férias escolares, começar a ler; praticar um pouco a leitura e não ficar vidrado apenas na TV e no videogame.
Peguei lá uma edição de bolso de O Homem Bicentenário (editora L&PM), de Isaac Asimov, inclusive adaptado para o cinema, com Robin Williams na pele metálica do protagonista.
Comecei a folheá-lo e qual não foi a minha surpresa em achar a tirinha há tempos perdida por entre suas páginas, a lhe servir de marcador?
Deixei o livro com o meu filho, fiz-lhe as recomendações de praxe (que sei que ele não acatará), lembrei-o de suas tarefas na casa (que ele se esquecerá) e pus o pé à rua. Levei a tirinha comigo. Agora, não mais a perco. Estou pensando até em reforçar o seu verso colando nele uma tira de um papel sulfite mais grosso, colorido (laranja ou azul) - minha esposa tem dessas folhas mais "frescas" - e plastificá-la. Transformá-la oficialmente num marcador de livros.
Gostei tanto dessa tirinha que, à época, até a transfigurei (espero não tê-la desfigurado) em um poema : O Poema da Desejada Invisibilidade, publicado lá nos primórdios do Marreta e que, agora, republico.
O Poema da Desejada Invisibilidade
Estão, o Coisa e a Mulher Invisível, na mesa de um bar.
Totalmente porrados, hálitos rançosos,
Copos rançosos de digitais e labiais, luz de 25 W,
Paredes lacrimejantes de mofo;
Porrados, deprimidos da vida,
Melhor: deprimidos de vida.
Estão numa mesa de bar, o Coisa e a Mulher Invisível.
O Coisa: “Tá lá, porra, no dicionário Marvel, que eu dou conta de 75 toneladas”.
Pausa, lenta pausa, para um gole, grande gole, de ambos.
Continua, o Coisa: “Mas, vez em quando, quase sempre ultimamente,
O Coisa: “Tá lá, porra, no dicionário Marvel, que eu dou conta de 75 toneladas”.
Pausa, lenta pausa, para um gole, grande gole, de ambos.
Continua, o Coisa: “Mas, vez em quando, quase sempre ultimamente,
fica tudo tão pesado que eu arrio, com as 4 patas,
desmonto, mesmo”.
Outra pausa, para um bater de cinzas do charuto no cinzeiro;
Outra pausa, para um bater de cinzas do charuto no cinzeiro;
Volutas de fumo rodopiam, abraçam e dançam com a face paciente
Tolerante, resignada, da Mulher Invisível.
Ainda, o Coisa: “Sabe, às vezes, tenho vontade de sumir”.
Ainda, o Coisa: “Sabe, às vezes, tenho vontade de sumir”.
A Mulher Invisível: “Esquece! Bobagem... sumir também não adianta!”.
(A cena se fecha num superclose, num fantasticzoom
(A cena se fecha num superclose, num fantasticzoom
do cruzar de dois fastientos olhares, basáltico e etéreo-vaporoso.
A cena se fecha num superclose, num fantasticzoom
do escapar, do vazar, do erodir de duas distintas lágrimas:
de obsidiana, uma, capaz de riscar o quartzo,
de cristal corrediço, a outra, com igual índice de refração do ar.)
7 Comentários
Que charge fantástica, literalmente.
ResponderExcluirDeveras.
ExcluirDevo estar perdendo a capacidade de entender os cartoons. Quem conversa com o Coisa é uma mulher, a "Mulher Invisível"?
ResponderExcluirSim, Sue Storm
ExcluirSE eu fosse fazer um cartoon com uma "Mulher Invisível eu faria todos os seus traços pontilhados, não em linha contínua e a cor seria a mais esmaecida possível. Questão de gosto, claro. Meus filhos mais velhos leram essas histórias da turma do Coisa, mas nunca fui muito chegado em super-heróis, sempre gostei mais dos "sub-heróis", das caricaturas (Angeli, Jaguar e companhia ltda). Cheguei a ler algumas das revistinhas que eles compravam, mas nunca foi minha pegada. Tenho um filho que fez uma assinatura dessas revistas. Quando se casou deixou todas aqui em casa dentro de sacos pláticos. Nunca peguei nenhuma das mais de cem revistas para ler. Calvin sempre foi melhor que Mafalda, Niquel Náusea sempre foi melhor que Piratas do Tietê. Henfil sempre foi mil vezes melhor que o Ota. (acheo que tracei um perfil do meu gosto pessoal. Abraços. Em tempo: gostei muito mais do seu poema que do cartoon.
ExcluirQuando criança criei um caderno de tiras. Recortava dos jornais e colava em um caderninho escolar. Não sei o que houve com o caderno. Sumiu.
ResponderExcluirSó fiz isso uma vez, com as tirinhas do Ferdinando Buscapé publicadas diariamente polo jornal "O Globo". Ainda as tenho, creio, mas perdi o início e o final da história, pois só grampeei.
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