Há pessoas que vivem por anos, até pelo resto de suas vidas, com fragmentos metálicos alojados em seus corpos, muitas vezes acomodados em regiões vitais, crânio, tórax, coluna cervical, e cujas remoções cirúrgicas oferecem mais riscos do que, simplesmente, deixá-los lá, quietinhos. E eles são deixados lá, quietinhos .
Volta e meia, porém, fazem-se lembrar por seus donos, fazem-se saber que ali ainda fazem morada. Basta um movimento mais brusco, menos cuidadoso, um dia mais frio e chuvoso. E eles voltam a incomodar.
É o mesmo com certos tipos de saudades. Removê-las do miocárdio de seu portador seria matá-lo na mesa cirúrgica. Menos arriscado deixá-lás, quietinhas. Volta e meia, porém, também fazem-se lembrar, fazem-se saber que ainda coexistem ali. Basta um baixar de guarda, um dia mais cinza, um desembestar da memória . E elas voltam a incomodar. E a doer.
Assim, pelas razões expostas, há muito não passava defronte ao local onde um dia foi o Paulistânia Rock Bar. Para não fustigar o estilhaço aconchegado ao peito.
Hoje, porém, não sei por que cargas d'água, na volta do trabalho para casa, tomei uma rota alternativa (tenho várias) e resolvi visitar-lhe o túmulo, depositar-lhe peônias imaginárias ao pé de sua lápide.
Já falei do Paulistânia algumas vezes aqui, mas para compor rápido perfil dele, digo que o Paulistânia não foi somente o último bar de rock de Ribeirão Preto, capital da cultura (de cana-de-açúcar) e do abjeto sertanejo universitário. Digo que ele foi, desde sempre, o único bar de rock que essa cidade já conheceu.
Houve - e talvez até haja ainda - outros bares que tocavam rock em Ribeirão, o passável Bronze, o sofisticado e viadesco Vila Dionísio. Mas uma coisa é um bar tocar rock, outra - muitíssimo diferente, sem nenhum parâmetro plausível de comparação - é o bar ser um bar de rock. Se você não percebe a diferença, nem perderei meu tempo em explicá-la : você não seria capaz de entender.
O Paulistânia foi o único ambiente coletivo e "social", até hoje, no qual me senti à vontade, em casa. Não gosto de sair. Nunca me senti bem - e me sinto cada vez menos - em bares, restaurantes, cinemas lotados, onde quer que houvesse muita gente em volta. Gosto de acender fogueiras, mas em sigilo, não suporto o bando se congregando em volta delas.
Inexplicavelmente, no Paulistânia, o bando não me exasperava. Se não o último, eu era sempre um dos derradeiros a sair, isso já lá pelas três ou quatro da matina.
O Paulistânia operou de 1998 até 2012, 2013. Não estive em seu funeral . Por questões de força maior, deixei de frequentá-lo em 2008, 2009 : minha esposa não apreciava que eu o fosse seu habitué.
Depois disso, em 2015, foi arrendado pelos donos, o velho Durval e o Durvalzinho, para uma meninada mais nova. Mas essa nova encarnação do Paulistânia durou pouco. Só até inícios de 2016.
Hoje, depois de anos sem passar por ele, claro, não esperava vê-lo vivo ou reativado, mas contava com poder chorar um pouco sobre a sua lousa malcuidada e tomada pelo mato e pelas ervas daninhas. Esperava ver o logotipo desbotado a encimar seus grandes portões metálicos, portões sobre os quais, no passado, bem poderia ter sido escrito : "perdei, ó vós que aqui entrais, toda a esperança". Ver a sua casca oca de cigarra, que tanto cantara no passado.
Mas o que vi foi pior. Do Paulistânia, não restara nem a tumba. Sua ossada, exumada e levada sabe-se lá para onde.
Riber Balada Mix. Uma casa de swing, de troca de casais e cornagem em geral. Essa casa já funcionava há alguns anos em um local menor, na esquina superior ao Paulistânia e, pelo visto, emendou o seu prédio ao dele, aumentando o conforto de seus clientes.
Da tríade sagrada, sexo, drogas e rock'n'roll, extirparam este último.
Se minha esposa não gostava que eu fosse ao Paulistânia antes, imaginem, então, agora.
Pãããããta que o pariu!!!!!!
Descanse em paz, Paulistânia. Que eu, esta noite, não conseguirei.
4 Comentários
E você acha que eu também não queria saber mais desse lugar? Muito mais?
ResponderExcluirA casa já é antiga aqui no Jardim Paulista,funcionou em uns três lugares diferentes.
Agora, está na rua Daniel Kujawski, um quarteirão pra baixo do Teatro Minaz, quase cruzando com o viaduto da Independência/Meira Júnior.
Kkkkk
ResponderExcluirOuço falar muito do Vila Dionísio.
É um ambiente refinado, em que você é servido e bajulado como se fosse um fidalgo. Trazem sua cerveja na mesa, cada cerveja tem o seu copo "ideal", com o nome da marca estampado, carimbam seu pulso com uma tinta sensível à luz ultravioleta na entrada etc. Todas essas besteiras que fazem as pessoas se sentirem mais importantes e poderosas do que realmente são.
ExcluirPara mim, bar de rock, é um local enfumaçado (apesar de que nunca fumei), que a gente pega a cerveja no balcão, bebe em pé, o mictório do banheiro masculino tem ou naftalina ou rodelas de limão-cravo, o segurança, ao invés de cordial, te olha feio como se você tivesse ou estivesse prestes a cometer alguma cagada e onde só tem barangas, não obstante, sexies, lá pelas duas da manhã é claro.
Bom ter você, de novo, por aqui.
Rapaz, e acha que eu não me lembro dessa casa? Eu passava direto por lá, só para ver as moças no alpendre. Via com os olhos e lambia com a testa, pois nunca tive grana para consumir tal produto, mas eram, de fato, material de primeira.
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