Então você está deitado olhando para
 o teto, a pensar sobre a maravilhosa e entediante estadia vulgar ou 
existência das coisas, sobre o fervilhar indissociável do que lhe cerca 
de si, diante da tranquila e ilusória sensação de que nada acontece. 
Você estreita os olhos e tomba um pouco a cabeça, num movimento que 
lembra o que os cães costumam fazer quando não compreendem alguma coisa, ou o que os idiotas fazem sempre ao tirar selfies.
 Ângulos. Alguém já disse que não somos mais tão crianças a ponto de 
saber de tudo, ponto bem feito, as crianças sempre veem as coisas de 
baixo pra cima ou do mesmo patamar: coisa, bicho, gente. Tudo igual. 
Certa vez vi uma moça escolher um vestido num brechó, em uma dessas casas
 de aluguel de trajes, escolheu um vestido de festa, queria saber se 
fora usado em algum casamento ou comemoração de quinze anos. 
O vestido 
era rosa, inteiro de paetês e pelo tamanho se fazia óbvio que devia ter 
servido a alguma debutante. A moça sorriu com a resposta positiva da 
vendedora e se virou sem mais a ponto de que eu pudesse ouvi-la dizer 
“um vestido tão bonito, que alguém amou demais por uma noite e pra nunca
 mais, o que faz você aqui junto de outros vestidos?”. 
Quantas as coisas
 temos ou será que as coisas nos têm? Quantos corpos terá visto aquele 
espelho? Quantas Alices o atravessaram? Quantas vezes o velho 
relógio roubou seus sonhos cronometrados, como quem puxa o tapete 
debaixo dos seus pés, como quem anuncia que o seu tempo acabou? Percebe o
 olhar de reprovação das coisas que lhe cercam, todas que você amou por 
um momento e se esqueceu. Todos os boa-noite que você não deu para a 
luminária antes de apagar, todos os bom-dia que você não disse para as 
cortinas ao descerrar, não houve uma só despedida para a xícara partida,
 fiel companheira de todas as manhãs, nenhum funeral para a caneca de 
todas as noites que finalmente se quebrou. E por onde será que anda 
aquele maldito guarda-chuva quebrado, largado ao relento, que fim será 
que levou?
2 Comentários
Sabadão e eu resolvo arrumar alguns livros, penso na raiva que eles devem sentir de mim, um punhado de velhinhos revoltados, loucos pra contar-me a mesma história. E eu já cada vez os visito menos.
ResponderExcluir"J"
Os meus, então, já me juraram de morte.
ExcluirE velhinhos gostam de contar suas mesmas histórias. Foi o que lhes restou.