Publicado na Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada, 18/03/13
"Dias atrás, uma amiga, alta executiva paulista, radicada no Rio, me
mandou um e-mail com a cópia de uma resenha sobre um livro (fruto de
pesquisa de campo) de um antropólogo, Napoleon Chagnon, que estudou os índios ianomâmis no Brasil e na Venezuela por muitos anos.
Suas conclusões não são aquelas que a comunidade acadêmica, ideologicamente orientada na sua quase totalidade, costuma gostar.
Quem sabe, este "desgosto ideológico dos pares" (gente ávida por
destruir oponentes teóricos) tenha sido responsável pelos desdobramentos
negativos que o antropólogo teve em sua vida profissional por conta
desta pesquisa.
O livro ("Noble Savages"), que logo comprei, deveria ser lido nas
escolas. Um tratado contra a tradição marxista, não só em antropologia,
mas em tudo mais. Mas o que especificamente tem esse livro contra esta
tradição?
Engana-se quem pensa que a tradição marxista comece com Marx, ela começa
com Rousseau e seu bom selvagem. O princípio é que o homem é bom e a
sociedade é que o perverte. A perversão do bom selvagem pelo "Das
Kapital" é apenas uma decorrência do principio do Rousseau, só que para
Marx não partimos do bom selvagem, mas sim chegaremos a ele quando
superarmos esta sociedade má.
Uma ideia assim (que somos bons e a sociedade nos corrompe, e aqui você
pode colocar no lugar de "sociedade" a família, o patriarcado, a igreja,
o capital, os EUA, o patrão, seu pai autoritário) faz almas fracas
gozarem de prazer. Porque o que ela diz é que, ao final, não sou
responsável por nada que faço. Não fosse pela "sociedade", eu seria um
homem bom.
Ao contrário do que parece, essa tradição pegou porque alimenta algo de
muito banal: que somos homens bons em nossa natureza essencial. Esta
ideia alimenta nossa vaidade e não foi por outro motivo que Burke,
filósofo britânico do século 18, chamava Rousseau de "filósofo da
vaidade".
Nossa origem é o bom selvagem? É por isso que australianos que não têm o
que fazer se pintam de aborígenes e gritam por aí? Quanta bobagem!
Quanto lixo escrito com tinta cara!
Também concordo que devemos olhar para o "passado" para entendermos como
somos hoje. A diferença é que minha ideia de "estado natural do homem" é
diferente da de Rousseau, o filósofo da vaidade. Partilho da ideia que
para nos entendermos devemos olhar para a pré-história de fato, e não a
mítica, como a do Rousseau.
Este mito alimenta uma outra bobagem: a ideia de que toda diversidade
cultural é linda. "Viva a diferença!", dizem os festivos por aí.
A "humanidade", na sua capacidade frágil de não ser bicho malvado, foi
tirada das pedras, à custa de muito sangue. Sempre bebemos o sangue dos
outros no café da manhã.
E aí voltamos ao livro. A conclusão de Chagnon é que os ianomâmis,
parentes nossos que vivem muito perto do que seria o neolítico, tribos
que permaneceram bastante "puras" enquanto outras já haviam sido
"contaminadas pela maldade do homem branco" (risadas?), sempre se
mataram por uma razão nada complexa: "mulher, mulher, mulher".
Inclusive, quem tinha mais mulher, tinha mais descendentes.
Qualquer evolucionista gargalharia diante de tamanha obviedade ocultada
pelas interpretações ideológicas pueris da falsa história do bom
selvagem.
Os ianomâmis também têm suas Helenas de Troia. Entre eles, quem matava
mais tinha mais mulher. Entre nós, quem é mais "adaptado" tem mais
mulher.
Não se trata de culpar as mulheres porque são filhas de Eva.
Responsabilizar a mulher pelos males do mundo é coisa de homem brocha
que, por não conseguir penetrá-la, recorre à falsa culpa feminina para
aplacar sua desgraça.
Reconhecer que os ianomâmis se matam em troca de mulheres (ou se matavam
enquanto eram "puros" ou "bons selvagens") não é uma prova contra as
mulheres. É uma prova contra Rousseau e sua tradição do bom selvagem.
Eu, pessoalmente, acho até uma boa causa. Quero dizer, nos matarmos por
mulheres. Neste caso, o troféu é bem concreto e todo mundo sabe de seu
"valor de uso".
Isto é, não precisamos de provas metafísicas para reconhecer o valor de uma mulher."
0 Comentários