Tenho um amigo que... esse  tenho, depende. Depende de amigo não ser produto perecível, de não ter  prazo de validade, não vir com recomendações de manter em ambiente  refrigerado após primeiro uso. Se assim, não tenho nenhum. Sou  infindamente negligente no trato aos meus amigos. Não telefono, não  envio e-mails, mal retorno as ligações que me são feitas, declino de  convites com as mais esgarçadas desculpas.
Remeto,  vez em quando, imensas cartas, linhas e linhas plenas de minhas  digressões e de meus garranchos; aí quem não se manifestam em retorno  são eles. E eu entendo. Talvez nem as leiam. Quem, hoje, consegue  atentar para mais de 10 ou 15 linhas de palavra escrita? Vamos lá que as  leiam. Quem, hoje, sabe empunhar uma caneta por mais de 10 minutos sem  que cãibras lhes travem os músculos e ossos? Ainda que improvavelmente  as escrevam, quem, além de mim, ainda cria pombos-correio que as  entreguem? Só eu. Só eu ainda crio pombos-correio, concessão feita  devida à poluição causar interferências em meus sinais de fumaça. Só eu  ainda crio pombos-correio. Por isso, eu os desculpo da ausência de seus  envelopes sobre a minha mesa, a ocupar minhas gavetas. Por motivos  contrários, e, justamente por isso iguais, eles não se ressentem de  minha ausência.
Sorte minha, portanto, amigo não portar recomendações técnicas e ter garantia infinita.
Orgulho-me  em dizer que nada devo a ninguém, algo incomum hoje em dia. Apenas  monetariamente isso corresponde. Devo aos amigos uma lembrança – fazer  com que fiquem sabendo de minha lembrança, pois lembrá-los sempre lembro  - , um cartão pelo aniversário, pelo Natal, pelo dia em que conheci  cada um.
É  inevitável, forçoso até, que datas de início de namoro sejam  recordadas. E datas de início de amizade? Pois é! Eu me recordo. Eu  tenho dessas delicadezas que ninguém percebe, a que ninguém atribui  valor. Devo visitas e convites para que me visitem. Devo fortunas aos  meus amigos. Mas tenho sorte, meus grandes amigos são generosamente  condescendentes com meus calotes.
E é a um desses amigos – sem prazo de validade e credor eterno – que faço referência no início desse relato.
Esse  amigo tem outro amigo que, certo sábado, ônibus a caminho do shopping,  cedeu bem-intencionadamente seu assento a uma velhinha recém-embarcada  no coletivo. Aconteceu de ser sábado de carnaval, e, nessas épocas idas  de que digo, era comum, uma espécie de tradição bárbara, alvejar  veículos com jatos d’água e ovos, hoje já não se vê dessas práticas.
Pois  bem. Nem reles quarteirão andado, um ovo passa pela janela e atinge  precisamente a cabeça da velhinha. Sem olhar para a velhinha, esse amigo  de meu amigo afunda-se sorrateiramente para a parte traseira do ônibus.  Mais um bem-intencionado a garantir vaga no Inferno.
Aliás,  se o Inferno está cheio de boas intenções (e ele realmente está) não é  para castigo dessa hedionda raça dos bem-intencionados: é para suplício  do capeta. É para castigo ao capeta que deus colocou-o a conviver com os  bem-intencionados.
Lembrei  da história da velhinha quando caminhava por um parque municipal, área  arborizada, cachoeiras artificiais e ruas bem pavimentadas por entre a  mata, ruas frequentadas matutinamente por aposentados, gordas donas de  casa e alguns desocupados como eu.
Lembrei  da história da velhinha porque flanando por esse parque me deparei com  uma cigarra que se debatia no chão, no asfalto já a ficar quente, sem  conseguir alçar seu vôo. Ecologicamente correto que estava naquela  manhã, segurei-lhe pelas celofânicas asas e arremessei-lhe ao alto. E  não é que o inseto firmou prumo e saiu a voar com o estardalhaço  inerente às cigarras?
Já  estava até a me vislumbrar recebendo um prêmio dessas ONGs inúteis de  preservação da vida selvagem. Prêmio pela minha boa intenção. Pois bem.  Nem reles 20 metros voados e a cigarra é colhida, trespassada pela  agudeza do bico de um bem-te-vi, que monitorava o seu trajeto (o da  cigarra) desde que eu a havia catapultado ao ar. Esse pássaro que  ostenta uma máscara negra a lhe ornar os olhos, esse Zorro emplumado,  jogou a minha boa intenção a uma cratera de enxofre fervente.
Por  isso, quero distância dos bem-intencionados, daqueles que querem ajudar  mesmo que ninguém lhes peça, daqueles que “ajudam” mesmo contra a nossa  vontade. Grandes filhos-da-puta, os bem-intencionados.
Deste modo, torço para que as forças que regem esse caos todo em que estamos inseridos me proteja dos bem-intencionados.
Pois sei que as cigarras elas não protegem. Nem as velhinhas.
0 Comentários