Pequeno Conto Noturno (5)

- Ainda tem cerveja na geladeira? - Calil pergunta a Rubens, cansado, entretido com um livro.
- Tem.
- Quantas?
- Umas quatro.
- Das normais ou daquelas grandes?
- Das grandes.
- 'Cê já reparou quantos ml tem essas porras, Rubens?
- Meio litro, sei lá.
- Algumas até têm, mas a maioria tem 473 ml, de onde tiraram isso, 473 ml?
- Nem imagino.
- 'Cê não pensa nessas coisas, não?
- Não, só bebo.
- Tenho certeza - se empolga Calil - que é mais uma daquelas merdas de medidas inglesas, saca, né?, aquelas porras de libra, milha, jarda...
- Não, não saco.
- Escuta o que eu tô dizendo, Rubens, inglês é tudo doido, Jack Estripador, a família Real inteira, aqueles museus de cera, aqueles ônibus de dois andares, os caras gostam de Duran Duran e Elton John, puta que o pariu, viver numa ilha dá nisso, cara.
- Pode ser.
- Minha teoria é que parte da loucura dos ingleses vem dessas medidas fudidas que eles usam, medir é uma coisa exata, certo? Para a inglesada, não. Uma polegada é 2,541 cm, uma libra, 0,4536 kg, um pé, 30,48 cm, uma jarda, 0,9144 m, tem até uma tal de onça, que é 28,352 g, tem uns xampús e produtos de beleza que usam essa porra. Já pensou medir usando essas merdas? Deixa qualquer um doido. Imagina o moleque querendo medir o pau pra ver se cresceu... 4,32 polegadas, até o moleque entender, o pau já murchou, deve ser por isso que os ingleses são dos povos que menos trepam. Esses 473 ml devem ser uma doideira dessas, vou lá pegar uma, tá?
- Não.
- Não?
- Você já matou a meia garrafa de rum que eu tinha, se quiser cerveja, vá comprar.
- Ei, já são quase três da madrugada...
- O Posto da Forquilha fica aberto direto, e só tá a uns 3 quarteirões daqui.
- É que não sou muito bem visto por lá...
- Caloteiro não é bem visto em lugar nenhum - e Rubens fecha o livro, desistindo da leitura.
- Que merda é essa que 'cê tá lendo?
- Que eu tava tentando ler.
- Que seja.
Rubens vira o livro e mostra a capa a Calil.
- Só podia... não sei o que 'cê vê nessa merda de Bukowski, o cara só fala de bebedeira, buceta e cu.
- E do que mais há para se falar?
- Muitas coisas, não lembro nenhuma agora, mas muitas coisas. Taí, Rubens, o Bukowski negaria cerveja a um amigo?
- Bukowski não tinha amigos, e ainda que os tivesse, seria capaz de negar-lhes a própria merda recém-saída do rabo. E você não é meu amigo.
- Puta ingratidão, Rubens, eu tô aqui nesse seu momento de necessidade...
- Eu nunca te chamo pra vir aqui, você é quem sempre aparece sem avisar e sem cerveja, e não estou com porra de necessidade nenhuma.
- Como não tá? Olha, até admiro esse tipo durão que 'cê faz, mas a Andréa foi embora, não foi? Te deu um pé na bunda, certo? Todo mundo que toma um pé na bunda quer companhia.
- Se você tivesse um fornido par de mamas, isso seria verdade, só que não é o caso. Além disso, Andréa ter me dado um pé na bunda é só um modo de ver a coisa.
- Só um modo? Que outro? Ou foi você que deu uma bundada no pé dela?
- Talvez eu tenha deixado ela me dar um pé na bunda, tenha induzido ela a isso, mais fácil que dispensá-la e aguentar choradeira, gritaria, ser taxado de canalha, essas coisas.
- Sei. Pra cima de mim? Ninguém dispensa um bucetão daquele, com todo respeito, Rubens, mas ela devia ter um bucetão, certo?
- Tinha. Tem.
- Então, eu tô aqui pra te ouvir, dar um apoio moral, vou lá pegar uma lata.
Calil levanta e tem seu passo bloqueado por Rubens, que também se levanta e sabe que só há um modo de parar Calil quando ele entra nesse estado frenético.
Rubens não é brigador, não sabe técnicas de bater, porém tem seus 90 e alguns quilos contra os 60 e poucos de Calil. O soco de Rubens, na boca do estômago, faz Calil dobrar ao meio, chega a erguê-lo uns centímetros do chão.
Calil cai em posição fetal, xingando.
Rubens vai à geladeira, volta com uma lata, senta-se no sofá e retoma o livro.
- Rubens... - diz Calil antes de apagar, derrubado pelo soco e pela meia garrafa de rum - enfia o Bukowski no cu.
O Bukowski não iria gostar disso... nem eu, pensa Rubens, e retoma a leitura, não se concentra.
Andréa se foi.
Mulheres se vão, são assim.
Mulheres enjoam rápido, amam um vestido hoje, usam duas ou três vezes e já o odeiam, o mesmo com sapatos, cortes de cabelo, homens.
Homens são mais estáveis, confiáveis. Até usam uma roupa diferente de vez em quando, pra variar, pra brincar, mas são fiéis ao básico, usam a mesma roupa por anos, até gastar e furar, ainda assim só a jogam fora porque a mulher reclama que ela está gasta e furada.
São assim com os relacionamentos, também.
Homens são muito mais confiáveis, só que não têm peitões, conclui Rubens.
- Vai continuar a me negar essa merda dessa tua cerveja barata? - Calil, do chão, sem abrir os olhos.
Rubens não se sente disposto a lhe dar outro soco. De mais a mais, Calil é outra voz no pequeno apartamento, que não a sua. Outras vozes, que não a nossa, ajudam a manter a loucura afastada, adiam-na.
Rubens levanta, tem ânimo e punhos cansados, calça seus chinelos, põe uns trocados no bolso da bermuda, verificando se não é o furado, e desce. Vai ao posto, comprar mais um fardo com 6 cervejas, para quando Calil acordar.
De qualquer maneira, Calil lhe dá muito menos problemas e aporrinhações que Andréa.
Ou que qualquer outra.

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