O Recarregador de Baterias

A bateria do carro da minha mulher pifou há uns dias.
O culpado - culpada, no caso - : a lampadinha do teto interno do automóvel.
O culpado pela lampadinha ter "dormido" acesa : eu.
Nem todas as equipes forenses daqueles seriados americanos seriam capazes de colher uma única digital minha ali, nem sequer uma parcial de uma digital.
Calei-me com a culpa que não me cabia, não era hora de discutir tecnicalidades. Era noite de domingo e o carro seria necessário pela manhã. Foi feita uma ligação para a companhia de seguros, em quarenta minutos chegaria o socorro.
Problema resolvido, os ânimos serenaram. Continuei calado com minha culpa descabida, era melhor aproveitar a calmaria.
O autossocorro chegou no horário previsto e eu, embora nada saiba de automóveis e seus componentes e de nenhuma ajuda possa ser nesses casos, desci junto, cumprir meu papel de marido.
A unidade de socorro era um daqueles caminhões gigantes, com um sem-número de rodas, pesadíssimos, brontossauros mecânicos, que fazem trepidar o asfalto às suas passagens, e com o nome THOR pintado na porta.
A carregar uma bateria no colo, saiu um rapaz das entranhas do caminhão, da bateria brotavam dois cabos encapados em plástico azul, cada qual com um "jacaré" metálico em sua extremidade.
Confirmou nome do requerente, endereço, entrou na garagem do prédio, pediu que o capô fosse levantado, encaixou na bateria do carro os "jacarés" e pediu que a ignição fosse acionada.
O carro ressuscitou, pegou que foi uma beleza.
Minha mulher assinou um papel numa prancheta a atestar o atendimento, agradeceu ao rapaz e lá se foi ele, noite adentro, invulnerável em seu caminhão-THOR.
Fiquei com inveja, fiquei feliz pelo cara.
Chegar, fazer o serviço que sabe, sem ninguém se intrometer ou dar palpite, receber agradecimentos e ir adiante.
Sou professor há 15 anos e apenas uma vez - uma única vez - um aluno me agradeceu pela boa aula dada, uma aula prática sobre Pilha de Daniel.
E isso foi em 1998. Lembro do nome dela até hoje; que tipo de ser injusto e insensível pensam que eu sou?
Sílvia, uma descendente de japoneses (e podia ser diferente?), que eu soube, tempos depois, ter ingressado e se graduado em uma conceituada Universidade de Química, disciplina que eu lecionava à época.
Em algumas ocasiões, acontece de encontrar ex-alunos, já adultos, e eles admitirem que eu é quem estava certo em minha "chatice", em minha rigidez para com eles, que foram idiotas em não melhor aproveitarem minhas aulas.
Novidade... Sempre soube que estive certo em meu sistematismo e que eles eram um idiotas. E nem considero elogio ou agradecimento a admissão do fato por parte deles, esse reconhecimento tardio não me dá consolo nem alento, é coisa de puta arrependida, de puta velha.
Exceto Sílvia, nenhum agradecimento.
É precisamente a intensificação de seu oposto que mais e mais se arraiga a cada novo ano.
Recriminações são a paga diária.
Toda a apatia, burrice e inabilidade mental dessa atual geração de adolescentes, causada por uma sociedade consumista, imediatista, do descartável, narcisista, de pais e mães descompromissados, promíscua e permissiva, é creditada ao professor.
Toda a culpa pelo analfabetismo de um povo, cuja única tradição imutável em seus 500 anos de história é ser justamente analfabeto, é imputada ao professor.
A propósito, o analfabetismo como identidade cultural não é apenas uma tradição, é também orgulho nacional. O brasileiro orgulha-se de nada saber, de não "precisar" estudar, jacta-se de sua ignorância.
Eu digo que vão todos às putas que os pariram!!!
Por isso, tive inveja do rapaz recarregador de baterias.
Sonhei-me, naquela madrugada, um recarregador de baterias, de carro em carro, recebendo obrigados de seus descuidados proprietários e a navegar pela noite silenciosa e cúmplice em meu caminhão-THOR, a atropelar faixas de pedestres, a ceifar semáforos, a buzinar para as gostosas nas calçadas.
Inexorável, indetível.
Acordei leve de meu sonho. Leveza que pouco se demorou em mim, porém. Mal tomou direito o café da manhã.
Logo, eu estava de volta às minhas aulas de plateias ingratas e indiferentes.
Logo, estava com minhas baterias arriadas.
Tive que pegar no tranco !

Postar um comentário

0 Comentários