Doe Sangue, Salve Vidas

Comecei a doar sangue no ano de 2000, levado por uma campanha de conscientização e recrutamento em meu local de trabalho.
Ano de 2000, bonito número, uma espécie de zerar da história, eu a morar em nova cidade, a exercer nova atividade profissional, a conhecer e a amargar um novo tipo de solidão.
Uma enfermeira semianalfabeta palestrou sobre a importância da doação, sobre a importância de salvar vidas humanas.
Nunca acreditei nisso.
Vai que meu sangue seja usado e salve a vida de um criminoso, um vagabundo que chegue ao PS baleado pela polícia? Um assassino? E que, revigorado pelas minhas hemácias, mate mais uns tantos? Inclusive a mim? Paranóia? Pode ser que sim, e tomara que sim. O paranóico é quem sempre saca as coisas. As piores desgraças acontecem com as pessoas que nunca as esperam.
Mas a ano era 2000 e, mais que um ano de renovar crenças, eu - recém levado um pé na bunda - estava de olho em nova buceta, certos tipos de mulheres se derretem por bons samaritanos, por caras conscientes e politicamente corretos.
Confesso sem pudor: doei sangue para impressionar uma colega de trabalho, muito mais fácil e indolor que ter de levar com ela horas e horas de conversa, de papo-furado.
Doei sangue na manhã de uma sexta-feira e na noite da mesma sexta-feira doei uma boa quantidade de esperma; eu ainda tinha um excelente fôlego àquela época.
Fluido por fluido, secreção por secreção.
Poucas coisas nesse miserável mundo fogem a isso.
Depois disso continuei a doar nem sei o porquê.
Talvez para ver meu sangue escorrer sem perigo, numa situação controlada. Gosto de ver meu sangue se perder de meu corpo. Quando sofro pequenos cortes, retardo o que posso sua coagulação, gosto de ver a esfera rubra brotar da rachadura epidérmica, gosto de sorvê-la, de provar seu gosto doce-ferruginoso.
Talvez para informação sobre minha saúde. Chagas, sífilis, Aids, hepatite e outras moléstias são checadas nas doações de sangue. E à época, eu havia cometido algumas inconsequências, maravilhosas inconsequências.
Mas nunca havia dado a uma doação o caráter que lhe atribuí hoje.
Hoje, doei sangue para não trabalhar.
Doei sangue não para salvar vidas humanas, mas para poder ficar em casa, evitar contato com os humanos.
Por uma lei federal, os doadores têm seu dia de trabalho abonado em virtude da doação. Sempre soube disso, mas nunca tinha me utilizado dessa patifaria.
Hoje, utilizei-me. E nenhum remorso tomou-me de assalto.
No dia que tive livre, fiquei a pensar;
Cerca de 350 ml (0u quase meio quilo) de sangue são extraídos numa doação; vou receber ao fim do mês, sem nenhum desconto, perto de cinquenta reais por esse dia não trabalhado. Meu sangue valeu 50 reais.
Em 2000, eu troquei sangue por uma buceta nova; hoje, por 50 reais.
Inegável a desvalorização do sangue na última década, pelo menos do meu sangue.
Na sacada do meu apartamento, ladeado por minhas duas gatas, preferi ver por outro ângulo a suposta desvalorização do meu sangue.
Se 350 ml de meu sangue valeram coisa de 50 reais, um litro está a custar algo em torno de 150 reais.
O preço do litro de um bom whisky, de um excelente whisky.
Acariciei, satisfeito, o queixo de uma de minhas gatas.
A nação me pagou um Chivas para que uma vida fosse salva.
Achei um preço justíssimo.
Conheço poucas vidas humanas que valham uma garrafa de um bom whisky.

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