Pequeno Conto Noturno (105)

02h11. Como diziam antigamente - pensa Rubens, ou nem pensa, simplesmente o pensamento o invade -, cheguei ao fim do pito. O fumo do cigarro, do temporizador da bomba-relógio que é a vida, há muito foi todo queimado. Não satisfeita, a vida, árbitro que se apraz do sofrimento, decretou acréscimos, prorrogações. 
 
E Rubens lembra de quando ia, de quando, na verdade, era levado aos campos de futebol por seu pai. Preferia estar em casa, vendo festival Jerry Lewis, mas ir sentar-se às arquibancadas de cimento, à geral, ao sol das três ou quatro da tarde, parecia fazer seu pai feliz. Contava cada um dos noventa minutos, como um condenado cronometra, em contagem regressiva, os dias de sua soltura. E vinha, então, os acréscimos, as prorrogações, as decisões por pênaltis. Por que não pular por sobre toda a tortura e ir direto para os pênaltis?
 
Enfim, o fumo do cigarro que Rubens recebeu ao nascer fora todo queimado, mas a vida queria mais de Rubens, mais diversão, feito menino que arranca a cabeça de uma saúva e fica a ver seu corpo andar às cegas, que joga sal em uma lesma ou às costas de um sapo, ou que amarra uma linha de costura na bunda de uma borboleta e passa a tarde a empiná-la feito a uma pipa de papel de seda e rabiola de plástico de saco de lixo.
Juiz ladrão de jogos de várzea, a vida decretou acréscimos a Rubens.
 
Depois do fumo queimado, o filtro amarelo (a vida de Rubens sempre foi das mais baratas) incinerado, as pontas dos dedos, derretidas, as falanges distais do polegar e do indicador, calcinadas. A vida queimou em seu sumário Tribunal do Santo Ofício tudo o que havia, podia e não podia de Rubens.
 
Rubens só não explode e colapsa em uma supernova porque nunca teve estofo e combustível suficientes para arrastar consigo, para fazer-se acompanhar à sua cova, planetas caducos e estrelas recém-nascidas.
 
Nem mesmo para uma combustão espontânea. Nem mesmo pavio para o kundalini, nem mesmo rastilho para o fogo serpentino. Para um velório sem choro nem vela. Para uma cremação sem plateia.
 
Rubens nunca soube o que era decorrência do quê. Se a insônia, de suas angústia e depressão; ou suas angústias e depressão, de sua insônia.
 
Nunca lhe importou, na verdade. Acabava por lhe ser um tempo que a maioria das gentes - a dormir e a roncar, depois de, talvez, uma fornicada de três minutos - não dispunha. Um bônus, de mãos dadas sempre a um ônus, mas um tempo a mais.
 
Nessa bolha espaço-temporal, nessa Zona do Crepúsculo, Rubens lia, lia pra cacete, assistia a filmes, quanto mais longos, melhores, ouvia músicas, escrevia, escrevia e escrevia.
No dia seguinte - sempre sombrios -, as horas passadas em claro não lhe pesavam; eram-lhe, em verdade, se não faróis na borrasca, lampiões na falta de um luar em seu sertão.
 
Mas isso já se foi, tudo isso já era - como tudo deixa de ser, como tudo caminha para a entropia, para o zero absoluto.
A angústia, a depressão - xifópagos de Rubens - permanecem, fiéis, inarredáveis, mas não inspiram mais à criação, só ao desespero, ao pânico; a insônia também persiste, pertinaz, inexorcizável, mas não tem mais fome de ver, ouvir, conhecer.
 
Rubens, invariável e desgraçadamente, por volta das três da madrugada, rola e peregrina quilômetros pelo colchão, um romeiro em busca da graça de um fugaz cochilo que seja, ou pelado, saco e rola enrugados pelo fresco da madrugada, anda léguas tiranas pela sacada do apartamento. Um holandês voador a remar num deserto que já foi oceano.
 
A angústia, a depressão e a insônia, outrora suas Três Graças, sua trinca de ases de musas, hoje são apenas angústia, depressão e insônia, como as de qualquer cidadão comum.
Rubens reduzido ao mais vulgar dos comuns - e entorna o resto do latão. Por que não logo a morte? - pensa.
 
Por que não logo a morte extinção da matéria e da consciência, por que antes esta morte de todas as possibilidades, por que antes esta morte de desejar morrer?
Por que antes a mesma morte dos mortos que o rodeiam, dos mortos com quem convive como se vivos fossem? Por que antes a mesma decomposição e fedor da finitude que tarda tanto a acontecer?
 
Começando outro latão, Rubens se lembra de uma consulta médica marcada na semana que vem, um encontro com um desses sádicos exímios em prolongar o sofrimento e o martírio. Decide que não comparecerá. No ano que vem, talvez.  

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4 Comentários

  1. Às perguntas de Rubens, a dissolução una, anuindo-a ou não:
    "Por que não há escolha, não é você quem decide, não existe um botão interruptor a ser apertado. A vida segue sempre em frente, ela não dá uma paradinha ali, ao lado, esperando a nossa vontade de seguir com ela.
    Não são uma escolha os nossos dias registrados neste globo. Entretanto, podemos tentar uma existência com alegrias ou tristezas. Eis o cerne que concede, a Rubens, optar."
    Rubens, após viver tanto, será que não vale mais a pena continuar vivendo? Reflita com sinceridade, você e sua alma.
    Um abraço, tudo de bom.

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    1. Grande abraço, meu amigo.
      É que a depressão voltou a bater pesado, de uma forma diferente, mais indefinida, sei lá...

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    2. Mostra a pica pra ela e diz "aqui pra você, ó"

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