Não é Carnaval, Mas é Madrugada (16)

Acredito que um autoquestionamento seja recorrente entre nós, aqueles que, nos raros e desocupados momentos, ocupam-se assoberbadamente em pensar na vida, em dar asas e tratos à bola, sobretudo os já passados do meio da vida : é possível sentir saudades do que não vivemos?
Plenamente possível. Mais que possível : perfeitamente plausível. Tanto que as sentimos. E como as sentimos... As saudades do que não vivemos, inclusive, são muito mais legítimas do que as saudades do que sim. Podemos escolher as saudades do que não vivemos; com as do que vivemos, temos que improvisar, torná-las adequadas, formatá-las de recordações à saudades.
As saudades do que vivemos não são exatamente, integralmente, o que vivemos. São trechos editados de épocas, de relacionamentos. O cérebro, esse moldador de realidades, corta as partes ruins do filme, junta as boas em uma nova película e as põem a rodar no projetor super 8 da memória.
As saudades do que não vivemos não passam por essa depuração, por essa covarde censura. São longas-metragens rodados em uma única tomada, sem cortes, edições ou trucagens. São puras. São feridas vivas, em carne viva; não cicatrizes queloidais.
Gosto muito mais das saudades do que não vivi (e que escolho, portanto, agora viver, sentir) do que as saudades daquilo que foi sendo colocado à minha frente, pelo Acaso ou sei lá o quê, nessa longa estrada da vida.
Isso posto, tenho lancinantes saudades dos antigos Carnavais. Dos carnavais das Pastorinhas, da triste Jardineira, da Máscara Negra, do Pierrot Apaixonado (e sempre corno), da Cabeleira do Zezé, da Vila Esperança. Dos carnavais do lança-perfume vendido em latas metálicas douradas em qualquer farmácia (ops, pharmácia) ou mercearia.
Saudades que aumentam ainda mais nessas épocas, quando o tropel e a algazarra da comitiva de Momo se avizinham e se fazem ouvir ao longe. Mais ainda se me cai aos ouvidos, sorteada aleatoriamente do meu realejo de CDs piratas pela Lua Cheia, uma música do naipe de Ídolo de Cera, de Fernando Mendes.
Fernando  Mendes, cantor e compositor mineiro, foi um fenômeno radiofônico da década de 1970. Um dos campeões de pedidos, execuções e audiência nas rádios AM. Atingiu o seu auge, estourou nacionalmente em 1975, com a inclusiva canção Cadeira de Rodas : "sentada na porta, em sua cadeira de rodas, ficava... seus olhos tão lindos, sem ter alegria, tão tristes choravam..."
Fernando Mendes foi um homem à frente do seu tempo, criou a vaga para deficientes na MPB!
Vendeu mais de um milhão de cópias do compacto. Marca só atingida, à época, pelo Rei Roberto.
A reboque da Cadeira de Rodas, emplacou ainda outros sucessos, como Roda Gigante, a Menina do Subúrbio e a Desconhecida. E como todo fogo-fátuo, como todo fogo de palha, logo saiu de moda, caiu em ostracismo.
Então, em 2003, Fernando Mendes foi resgatado do limbo pelo diretor de cinema Guel Arraes, que incluiu a sua canção Você Não Me Ensinou a Te Esquecer na trilha sonora do imperdível filme Lisbela e o Prisioneiro, e por Caetano Veloso, a quem coube reinterpretá-la, despindo-a de seu vestido de chita e dando-lhe uma roupagem mais chique. A canção virou cult. Ganhou várias outras regravações depois disso. Recebeu prêmios da Associação Brasileira dos Produtores de Disco. Chegou a ser indicada ao Grammy Latino de 2004.
Não sei se essa redescoberta de Fernando Mendes ressuscitou também a conta bancária do cantor, mas trouxe o reconhecimento e a rendição ao seu talento negados na década de 1970, e concedidos, agora, vejam só a ironia (ou será a hipocrisia?), pela mesma "elite" cultural que o rejeitara e o taxara de cafona, então. E tanto o nariz empinado e torcido da década de 70 como os aplausos e louvações do século XXI são produtos do mais puro preconceito. Antes, preconceito contra uma estética poética e musical mais popular, menos (bem menos) sofisticada e erudita que a da turminha da Bossa Nova; depois, simplesmente, porque ele foi gravado pelo mano Caetano : se Caetano gravou, é bom, se Caetano gosta, vamos gostar também. Sim, também existe o "bom" preconceito.
Ouvi muito Fernando Mendes em minha infância. Nem lhe sabia o nome, mas o ouvia. Não por minha escolha, mas por tabela. Minha mãe, ao fazer o almoço e ao lidar com os intermináveis afazeres do lar, deixava o rádio sintonizado sempre no programa Eu, Ela e a Música, do radialista Iris Ribeiro, e Fernando Mendes era presença inequívoca em suas ondas de amplitude modulada. 
Hoje, ao escrever essa postagem, caiu-me a ficha de onde herdei esse meu gosto de ter sempre música por perto ao fazer o almoço, limpar a casa, lavar os banheiros etc. Herdei de minha mãe, e do Eu, Ela e a Música.
Agora, finalmente e sem mais prolegômenos, vamos a Fernando Mendes, ao Ídolo de Cera, aos antigos carnavais.

Ídolo de Cera
(Fernando Mendes / José Wilson)

Eu vou me embora, minha gente, já é hora
De acabar com esse sorriso de impressão
Não tenho ódio, tenho amor dentro do peito
Agora eu choro pois é grande a emoção

No mesmo instante que eu penso em ir embora
Sinto vontade de ficar, pra quê partir
Se em outros campos muitas flores já morreram
No meu canteiro elas tentam resistir

Eu estou perdido
Nesse bloco de ilusão
Eu estou perdido
Nesse bloco de ilusão

Eu sou apenas uma lágrima forçada
De um palhaço que insiste em não sorrir
Não sou ator, não sou poeta, faço versos
Mas de repente numa rima eu me perdi

Interpretando a minha vida vou em frente
Se o meu semblante é de graça, podem rir
Mas fiquem certos que a morte ronda perto
Qualquer momento vocês vão me aplaudir

Os meus farrapos e meus trapos já juntei
Só resta agora encontrar a solução
Se espero a morte ou se vou de encontro dela
Porque na vida de um tudo eu já provei

Se algum me encontrares pela rua
Jogando pôquer numa mesa de ilusão
Não faças caso, és mais um que passa e olha
Pra esse palhaço já no fim da procissão



Para ouvir a canção, é só clicar aqui, no meu carnavalesco MARRETÃO.

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2 Comentários

  1. https://www.estadao.com.br/paladar/qual-a-melhor-cerveja-puro-malte-do-mercado/

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