Serviço de Homem (a Crônica de uma Desgraça Anunciada)

Quarta-feira à noite. Pia da cozinha entupida. Entupidíssima. Claro que isso não é desgraça que se dê de um dia para o outro. É desgraça cumulativa, que se anuncia aos poucos, homeopaticamente, feito capítulos de novela, que vai nos dando pistas e indícios diários de seu inevitável desfecho. Sinais de alerta que eu fui sempre ignorando, fingindo que não eram comigo, protelando ao máximo a tarefa de botar minhas mãos à massa. O máximo chegou. Tem sempre o dia em que a casa cai.
Desde que nos mudamos para o novo apartamento, há cerca de ano e meio, que ela, a pia da cozinha, já apresentava sintomas, se não preocupantes, meritórios de uma maior atenção. A água, diga-se a meu favor, fluía normalmente ralo abaixo; porém, ao fim do escoamento, vinha do ralo um som de gorgorejo, um glub, glub.
Fui, ao longo desse tempo, empurrando o problema com a barriga, o problema e a água, que, às vezes, dava uma leve empoçada na cuba da pia, teimava um pouco em descer. Fui me valendo de medidas paliativas. Ora fazia sucção com um bom e velho desentupidor de ventosa, ora jogava água quente com detergente, ora mexia no sifão sanfonado embaixo da pia, levando-o para trás e para frente. E a sujeira acabava por ir embora.
Até que, na quarta-feira à noite, nenhum desses artifícios foi de bom efeito. Com muito custo, consegui fazer a água da louça da janta descer.
Toda essa minha prevaricação, em parte, em uma pequena parte, sempre veio da esperança, mais até preguiçosa do que vã, de que a sujeira acumulada no sifão e no encanamento, feito placas de colesterol nas paredes de uma artéria, por consideração e comiseração à minha pessoa e às minhas atribulações diárias, fosse naturalmente se solubilizar e seguir seu rumo esgoto abaixo. Ou, que um vórtice dimensional se abrisse e a transportasse para um aterro sanitário de uma dimensão paralela, para o hiperespaço, talvez.
Em parte, apenas em uma pequena parte por essa esperança preguiçosa e vã. O motivo principal de minha procrastinação é que desentupir uma pia faz parte de um conjunto de habilidades do qual eu não possuo nenhuma, e que é chamado genericamente de : serviço de homem.
Serviço de homem não é comigo. Nunca foi. Instalar chuveiro ou trocar sua resistência, arrumar fio do ferro de passar roupa, puxar uma tomada, furar a parede, substituir o cordame de náilon do varal suspenso da área de serviço etc são encargos não apenas penosos, mas praticamente irrealizáveis para mim. Para não me desmerecer por completo, até que me saio bem trocando lâmpadas e abrindo vidros de palmito ou de azeitona.
Porém, o colapso total se pusera à minha frente, a pia estava entupida, em definitivo. Resolvi apelar para a artilharia pesada : dissolvi uma boa quantidade de soda cáustica em um pote plástico e verti a mistura corrosiva ralo abaixo, esperando que a solução altamente alcalina se revelasse a solução para o meu problema. Avisei a esposa e o filho que não mais usassem a pia até o dia seguinte. Logo, fui ter com Morpheus, esperando - ah, de novo a esperança vã e preguiçosa - que a soda cáustica fizesse a sua mágica durante a noite.
Acordei, como de costume, por volta das quatro da manhã. Eu ajusto o despertador para as cinco, mas nunca lhe dou o prazer de me surpreender dormindo. Fiz o café, dei leite a uma de minhas gatas, tão insone quanto eu (a outra dorme o dia todo, feito um... gato), sentei-me ao sofá e me pus a ver um filme, A Cidade das Coisas Perdidas. Não tocara na pia, ainda. Dava para deixar a soda atuar por mais umas duas horas, o tempo do filme e de chamar esposa e filho às seis horas.
Finalmente, abri a torneira da pia em um forte jato. Esperava ver a água escoar pelo ralo, livre, lépida e solta. Esperava que o milagre da saponificação houvesse se operado durante a madrugada.
O caralho! A obstrução piorara ainda mais. Na noite anterior, com muito custo, é verdade, era possível fazer com que a água escorresse pelo ralo. Agora, nem isso. Não sumia-se uma única molécula de água. Mais constipado que cu de freira, o ralo.
Não havia como fugir ou me esconder, fui encurralado : iria ter que encarar um serviço de homem. Ai de mim!!!
Quinta-feira é dia de reunião peidagógica na escola, e nesta, por sorte ou por azar, fomos dispensados pela coordenadora de assisti-la presencialmente, devendo acompanhá-la remotamente, on-line, em casa, pelo famigerado Centro de Mídias de São Paulo.
Esposa e filho levantaram, tomaram os seus desjejuns, a esposa foi para o seu home office e eu fui levar o filho à escola. Na volta, uma épica batalha me esperava.
Batalha tão ferrenha que precisei de me munir à rua. De umas semanas para cá, tenho me segurado de segunda a quinta, só começando a maratonar a minha cerveja na sexta-feira. Porém, o  Universo, volta e meia, me põe frente a provações que sabe que não posso superar a seco. Depois de deixar o filho na escola, passei na loja de conveniência de um posto de combustíveis e comprei dois pães e quatro latões de Lokal.
Em casa, abri o primeiro latão, pus o Raul no toca-CDs e abri as portas do armário sob a pia. Lá estava o sifão sanfonado a me esperar, a debochar antecipadamente dos meus futuros esforços em desentupi-lo.
O armário sob a pia abriga diversos utensílios de cozinha - panelas, assadeiras, escorredores de macarrão, formas de bolo, tábuas de bater carne, raladores de queijo etc - e é divido em dois patamares por uma prateleira ao meio. Removi todos os utensílios da parte de cima da prateleira; sabia que, ao retirar o sifão, um pouco de água suja poderia lhes respingar. Um pouco de água suja? Um pouco? Ah, de novo a vã esperança!
Como havia água acumulada na pia, peguei um balde para recebê-la. Desenrosquei o sifão da cuba da pia e o direcionei para o balde. Estimei mal a relação entre a quantidade de água parada e a capacidade volumétrica do balde. A água ultrapassou o limite das bordas do balde e escorreu um tanto pela prateleira vazia e também pelo piso inferior do armário, molhando o fundo de algumas panelas. Começava aqui a minha caminhada ao calvário.
Esgotada a água, pus-me a pensar no que fazer para limpar o que havia dentro e desobstruir o sifão e o encanamento. Peguei, então, uma dessas mangueiras de jardim, atarraxei-a à torneira do tanque da área de serviço contígua à cozinha e a fui enfiando pelo sifão até sentir que ela tivesse chegado ao encanamento destinado a levar a água para o sistema de esgotos.
Abri ao máximo a torneira do tanque e corri para segurar o sifão levantado. Esperava que o fluxo de água da mangueira forçasse e empurrasse cano abaixo toda aquela podridão acumulada. O que eu já disse mesmo sobre a tal da esperança? 
Deu-se o oposto. A água da mangueira não desceu. Regurgitou. Golfou feito a menina do Exorcista. Um refluxo de água suja e infecta começou a sair pela boca do sifão e a escorrer pela mangueira, pelo meu antebraço até o cotovelo, para a coxa da perna direita onde ele se apoiava e daí para inundar o chão da cozinha e se espalhar para a área de serviço e para uma pequena sacada lateral a ela. Molhou também todas as panelas do pavimento inferior do armário. Todas teriam de ser lavadas.
Sem saber se largava a mangueira para fechar a torneira do tanque ou se continuava a enfiá-la sifão adentro, escolhi a segunda opção, até porque já era o que eu estava a fazer. Mexer em time que está perdendo, para quê?
Para onde eu olhasse havia aquela água podre. A mangueira continuava a bombear água para dentro e ela continuava a voltar cheia de sujeira malcheirosa, a alagar a cozinha e adjacências. A coisa parecia não ter fim. Aquilo estava um pântano. Um charco. Um rebosteio. Um rebuceteio só.
A vontade era a de sentar e chorar. Não me sentei. A água contaminaria também o meu cuecão samba-canção e, por capilaridade, subiria às minhas invioláveis pregas. Não dava nem para alcançar o latão colocado num balcão atrás de mim. Abre-te Sésamo, cantava o Raul.
Na água, havia tudo quanto é tipo de resíduo lodoso e pestilento que vocês puderem imaginar. Inicialmente, foi saindo um resíduo particulado, pequenos flocos de podridão - os corn flakes do meu catastrófico café da manhã -, confetes pegajosos de um carnaval mefítico. E eu lá, agachado, a enfiar e a cutucar as entranhas da casa com a minha nada viril mangueira. Em seguida, o caldo mais engrossou. Literalmente. Começaram a sair grandes nacos gordurosos e viscosos de sujeira, placas parecidas com espessas camadas de nata de um leite preto. Placas e mais placas.
De repente - de repente é o caralho; eu ficara ali agachado por uns bons 1o minutos -, alguma barreira entre o sifão e o cano emissário foi rompida e eu senti a mangueira penetrar mais fundo. A água passou a refluxar em menor volume e com menos sujeira, até sair límpida.
Larguei a mangueira, fechei a torneira do tanque, atarraxei o sifão de volta à cuba e abri a torneira. A água desceu maravilhosamente bem. Em um vórtice alegre. Sem nada a barrar o seu caminho.
Eu vencera. Inacreditavelmente, eu tinha vencido. Conseguira desentupir a pia. Enviar toda aquela borra infecta para o quinto dos infernos, para a puta que a pariu. Se bem que não exatamente para o quinto dos infernos : mais para o chão da cozinha, área de serviço e sacada lateral.
Era hora de limpar e desinfetar tudo aquilo. Meu gólgota não estava ainda nem à sua metade. Acabei o primeiro latão, abri o segundo, terminei de cantar S.O.S. junto com o Raul.
A água podre emporcalhara não só o chão, mas também tudo o colocado sobre ele. O lixinho ao canto da cozinha, os pés da fruteira, o tapete, os baldes e as vassouras na área de serviço, os dois latões de lixo maiores na sacada lateral, o fundo do vaso de babosa. Além disso, empoçou-se debaixo da geladeira e da máquina de lavar. De novo, a vontade era a de sentar e chorar. 
No entanto, fui à luta e à lata. Dei uma boa talagada e me pus à limpeza. Feito um estóico Quixote, com uma mão, eu brandia a mangueira de jardim e, com a outra, ia passando o rodo. Literal e infelizmente. Fui empurrando a imundície da cozinha para a área de serviço e dela para a sacada lateral. Sentia-me o próprio Hércules a limpar as cavalariças do rei Áugias.
Tudo o que podia ser movido - o lixinho da cozinha, os baldes, o tapete, as vassouras -, levei também para a sacada. 
Comecei a limpeza pelo armário sob a pia. Tirei as panelas, todas sujas, e as joguei na pia. Passei pano com água sanitária por todo o interior do armário e em suas portas. Lavei, enxaguei, enxuguei e voltei a guardar todos os utensílios. Tinha coisa ali que eu nem me lembrava de que existia.
Limpos o armário e as panelas, muito sabão em pó e água sanitária ao chão e muita esfregação com um vassoura de duras e grossas cerdas, sempre no sentido cozinha-sacada lateral.
Fui varrendo, bebendo, puxando com o rodo, ouvindo a discografia inteira do Raul e o ambiente foi voltando à normalidade. Até que tudo estava de novo nos conformes. Fiquei das sete e quinze às onze e dez da manhã nesta funesta lida. Mas vencera. A pia estava desentupida. A reunião peidagógica virtual? Deixei lá o computador "logado" no site, só para registrar minha presença.
Quase quatro horas de uma injusta e desleal batalha. Mas eu triunfara. Conseguira realizar um serviço de homem! Serviço que deveria ser reconhecido, agradecido e retribuído com um prêmio digno de um guerreiro, à altura de um caçador do paleolítico : um cu, por exemplo.
Qual o quê...
Da minha esposa, cujo seguro automobilístico cobre também pequenos reparos domésticos, o que ouvi foi : "numa próxima vez, a gente aciona o homem do seguro, ele deve ter algum equipamento que não faça tanta sujeira".
Pois é... meu "equipamento" não está mesmo valendo mais nada.
Abri o último latão, me sentei no trono do meu apartamento com a boca escancarada cheia de dentes e esperei pela hora de ir pegar o moleque na escola.

Postar um comentário

6 Comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Rapaz, você agora até me assustou. Tô achando que levei sorte. Pensei nisso de romper ou furar um cano, mas não usei nenhum material duro, pontudo ou cortante, só mesmo a mangueira de borracha.
      Sim, o brasileiro tem mais esse péssimo hábito de jogar comida na pia. Eu moro no 12º andar, de um prédio de 15. Eu acho que já havia muita sujeira acumulada antes de nos mudarmos para cá. No apartamento anterior, moramos por 14 anos e nunca aconteceu nada parecido.
      Por quanto, mais ou menos, sai um desse seguro residencial?

      Excluir
    2. Este comentário foi removido pelo autor.

      Excluir
  2. pó de bircabonato no ralo e jogar vinagre por cima

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Tentei isso, também. Eu acredito que bicarbonato com vinagre, detergente com água quente etc sejam medidas mais preventivas, que se feitas de vez em quando, antes do entupimento total, evitem o desastre. Vou tentar, uma vez por semana, ou a cada 15 dias, fazer isso.
      Valeu pela dica.

      Excluir
  3. Sempre procuro eu mesmo cuidar de problemas domésticos. No geral, dá certo. Às vezes, não. Mas sempre tento...

    ResponderExcluir