O Segredo dos Meus Olhos

Sou um velho. Ou, no mínimo, um envelhescente. Não tenho nem nunca tive nenhuma ilusão contrária a este fato. Nem quando era jovem. Assumo-me, tranquila e orgulhosamente, um velho. Aliás, dá-me um certo alívio em saber que a maior parte da jornada já se cumpriu - sempre detestei viajar. Voltar a ter 20 anos? Só para loucos e dementes. Só para masoquistas. Estou melhor hoje que aos vinte? Claro que não. Outra ilusão que nunca nutri. Voltar aos vinte e caminhar de novo para os 50, 60, 70? Ver a decrepitude se instalar duas vezes?
No entanto, distraído e disperso que sou, não me acostumei direito, quando saio à rua, em carregar comigo meus apetrechos de velho, meu kit terceira idade, composto, entre outras muletas, de meus óculos para "ver de perto".
Há 5 anos, como comentado aqui na época na postagem Considerações Sobre as Diversas Visões, diagnosticaram-me uma presbiopia, uma dificuldade de enxergar a curtas distâncias causada pelo enfraquecimento da musculatura ocular, ou seja, pela velhice, pela podridão, meu velho; o que o povão chama de "vista cansada".
Receitaram-me óculos para "leitura", um grau e meio em cada lente. E talvez seja este um dos motivos que faça com que eu os esqueça quando saio : óculos de leitura. Para mim, leitura é pegar de um livro, de uma reportagem, de uma revista, e não ver as ofertas da semana no panfleto do supermercado, ou a placa dos itinerários dos ônibus.
Acredito, porém, que o motivo maior do esquecimento de meu viagra ocular seja outro : o cansaço das vistas nos poupa, às vezes, de um outro cansaço, o cansaço de ver, confundido muitas vezes com o primeiro, mas muito pior. O cansaço das vistas, às vezes, nos alivia o cabresto e a carga de ver.
Qual é o maior obstáculo à boa visão do velho? O cansaço das vistas, ou o cansaço de ver?
Pois estava eu, hoje, agorinha há pouco, no supermercado, a comprar uns víveres para o corpo e umas latinhas para a alma e precisei verificar o prazo de validade de um produto. Confesso que, no mais das vezes, não faço tal conferência. Há produtos que, simplesmente, não estragam. Arroz, feijão, sal, vinagre, azeite, macarrão, cerveja, vinho, salames, linguiças e outros embutidos defumados, farináceos etc. São, ou alimentos secos, inóspitos aos decompositores fungos e bactérias, ou que passaram por tal processo de industrialização - pré-cozimento, liofilização e outros -, ou que carregam tal concentração de conservantes que, simplesmente, não perecem, não nos dão motivo algum para preocupação. Outros, contudo, a exemplo os de origem láctea, requerem certa atenção. Ainda mais se para consumo infantil. Se for pra véio não tem problema, o véio toma o leite azedo, tem uma diarreia, caga até as tripas e fica tudo bem, é até bom para ajudar o véio na prisão de ventre. Mas para crianças...
Eis, então, que uma bandeja de iogurte da Batavo, sabor morango, se pôs a minha frente como adversário intransponível, com pancas e arrogâncias de uma pedra de Champollion. Não bastasse o reduzido porte das letras e algarismos a informar a vida útil do produto, a tinta de impressão estava apagada, só havia sobrado as marcas em baixo relevo na tampa de alumínio.
Não me dei por vencido nem pedi arrego ou penico, de início. Forcei as vistas, nada. Inclinei o iogurte de modo que a luz do balcão frigorífico refletisse nas ranhuras da data de validade e me revelasse o seu segredo, nada. Tentei passar os dedos por cima da data impressa, tentei Braile, nada. Vali-me de meu último recurso. Posso nunca levar meus óculos quando vou ao mercado, mas levo sempre o meu filho de 8 anos, meu filho, o segredo dos meus olhos. Chamei-o, ele nem tirou o iogurte de minhas mãos : - 18 de julho de 2018, pai. Sorri de sua facilidade. Dei uma beijoca na testa dele.
Uma senhora ao lado - aliás, senhora porra nenhuma, uma véia mesmo, destas que a Natureza já catalogou, tombou e pôs placa de patrimônio -, que estava com o mesmo problema que o meu, assistiu à cena e falou : - eu preciso arrumar um desse pra mim. E FALOU OLHANDO PRA MIM!!!!!
Só adotando, véia, só adotando, pensei. Sorri educadamente pra ela, desconversei e vazei.
Hoje, aos 50 anos, indo para os 51, meu filho já faz as vezes dos meus olhos. Logo, aos 60, 70, ou mais, fará, quiçá, as vezes de meus braços e pernas; depois as da memória; e, finalmente, espero, seja a voz corajosa a autorizar que se me desliguem os aparelhos, a mão firme a segurar a minha e os olhos a me lerem pela última vez : - Expirou a data de validade, pai.

O Filho Que Eu Quero Ter
(Toquinho e Vinícius)
É comum a gente sonhar, eu sei
Quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer

Vejo um berço e nele eu me debruçar
Com o pranto a me correr
E assim, chorando, acalentar
O filho que eu quero ter

Dorme, meu pequenininho
Dorme que a noite já vem
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem

De repente o vejo se transformar
Num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar lá de onde vim

Um menino sempre a me perguntar
Um porquê que não tem fim
Um filho a quem só queira bem
E a quem só diga que sim

Dorme, menino levado
Dorme que a vida já vem
Teu pai está muito cansado
De tanta dor que ele tem

Quando a vida enfim me quiser levar
Pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar
No derradeiro beijo seu

E ao sentir também sua mão vedar
Meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar
Num acalanto de adeus

Dorme, meu pai, sem cuidado
Dorme que ao entardecer
Teu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter.

Para ouvir, é só clicar aqui, no velho MARRETÃO. E deixem uma caixinha de lenços ao lado.

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7 Comentários

  1. Azarão, mais uma obrigado pelo texto. Ri demais na parte do leite azedo pra os véios se desmancharem em bosta. Quanto a decadência, também estou nessa. Tenho 42 anos recém completos e já uso óculos específicos para vista cansada (ou presbiopia...) há 3. Atualmente, sao grau 1,75. Estás bem melhor que eu neste aspecto. Abraço!

    Cássio - Recife, PE.

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    1. Rapaz, ainda uso 1,5 grau porque nunca mais fui ao oftalmologista. Numa próxima consulta, na certa, passará para 2 ou mais.
      Abraço.

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  2. Gostei muito do texto, principalmente da ideia do "cansaço de ver". Ótima sacada. Mas não deixo de sorrir quando leio suas considerações sobre o envelhecimento, pois lembro-me dos primeiros textos que saíram no Blogson, sinal de que existe mesmo uma "síndrome do cinquentinha". Quanto à letra do Vinícius, há dois momentos em que está intimamente ligada à minha vida: quando meu filho mais novo era ainda bebê, eu o ninava cantando baixinho essa música. Agora, com as netinhas, já tentei fazê-las parar de chorar cantando também, enquanto as carrego nos braços (uma de cada vez, lógico). Mas ainda não funcionou.

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    1. Vejo pelo meu filho : essa meninada de hoje não tem bom gosto musical, e olho que eu insisto.
      Já tentou cantar algum sertanejo universitário pra elas? Melhor não. Vai que funciona.

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  3. Ótimo até no título! Me lembrei dos excelentes filmes do Darín. Aliás, assistiu "La cordillera"? Recomendo.

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    1. O Segredo dos Seus Olhos é realmente um puta dum filme. Ainda não vi o filme que recomendou. Tem na netflix?
      Aliás, falando em filmes argentinos, já assistiu a 27, o Clube dos Malditos?

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    2. Está na lista! Passando essa semana, verei, sem dúvida.
      Infelizmente, não tem. Passou um pouco despercebido o filme no cenário mundial. O jeito foi apelar para torrents e download em servidor argentino.

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