Eu, Robô

Eu sou um eletrodoméstico, daqueles multifuncionais.
Realizo a faxina da casa, gerencio a despensa, reponho estoque, ponho a roupa de cama e banho para lavar e as estendo e recolho, alimento as gatas e limpo o resultado disso, atendo aos rapazes dos correios e da companhia de força e luz, rego as plantas, baixo o toldo da sacada fazendo desfeita para o Sol e o ergo acolhendo a Lua, eventualmente pinto umas paredezinhas, reparo alguma instalação elétrica, rejunto um piso de banheiro, mato baratas, pernilongos, formigas e escorpiões, não sou programado para jogar futebol à noite com os amigos nem tampouco para assistir jogos pela TV, compro o gás de cozinha e vou escada acima com o botijão no lombo, preparo a comida, lavo a louça e a tudo guardo, troco lâmpadas e os rolos terminados de papel higiênico, desço com o lixo nos dias do lixeiro passar, checo portas, janelas, torneiras a pingar e desconecto aparelhos elétricos antes de dormir, sou despertador e cafeteira, também.
Assemelho-me àquela robô dos Jetsons (acho que Rose é o nome dela), a deslizar pela casa com seus indefectíveis avental, touca e espanador.
E nas horas vagas, para desgraçar de vez minha situação, sou professor.
"Profissão" que acaba por mais consolidar minha condição de eletrodoméstico. Afinal, é consenso geral: "ser professor é fácil, professor trabalha pouco, professor tem muito tempo ocioso, professor ganha bônus e computador do Governo, professor reclama de barriga cheia".
Até pessoas próximas - de nossas relações, inclusive - têm bem arraigado esse ponto de vista, brincamos de trabalhar.
O filho(a) vagabundo(a) não deu para nada?
A solução é fácil: colocam-no(a) a fazer um curso de fim de semana qualquer e o mandam a ser professor.
Como profissional, sou uma nulidade. Não tenho direito à opiniões. Na verdade, tenho. E posso até expressá-las, mas elas não são respeitadas, não são levadas em conta, são tomadas como choramingos de criança birrenta, nem são ouvidas na esmagadora maioria das vezes. Melhor ficar quieto, então. Melhor manter todo esse veneno empoçado na garganta. E torcer para que ele não assuma ares de um câncer.
Como homem, detenho status idêntico à minha supracitada condição profissional.
Como eletrodoméstico, acredito que funciono razoavelmente, não têm chegado a mim grandes reclamações.

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3 Comentários

  1. Você me fez lembrar de Nelson Rodrigues nesse texto, pior que nem foi da Comédia da Vida Privada, mas do personagem do livro O Casamento.
    "J"

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  2. Bem legal seu texto. Durante a leitura lembrei-me da música do Chico: "todo dia ela faz tudo sempre igual"..., justamente pela rotina do dia a dia. Também dou minhas cacetadas nessa área, mas o sarrafo é muito alto. Por isso, nem sempre atendo as expectativas. Aliás, rotina doméstica me faz lembrar dos carroceis de parque de diversão, sempre girando, sempre passando pelo mesmo lugar.

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  3. Muito bom! Minha mulher também deu aulas até nos casarmos. Era uma cu de ferro que em vez de namorar, ficava à noite corrigindo provas, essas coisas. E eu até ajudava em alguma coisa, embora não saiba mais o quê. Viver até que pode ser divertido, ruins são as partes ruins.

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