A (Falta de) Curiosidade Matou o Gato

Quem tem – ou teve – animais de estimação, desses comuns, gatos, cachorros, sabe da curiosidade inerente deles, da bisbilhotice inata desses bichos. Sobretudo em filhotes, sobretudo se forem gatos. Basta uma pessoa fora de seus costumes entrar em seus territórios para ser submetida a uma bateria de escrutínios: cheiradas, arranhadelas, pequenas mordidas, lambidas; até que se dêem por satisfeitos e voltem às suas almofadas. Basta chegar em casa com um embrulho, um pacote, uma caixa na mão e lá estão eles de novo. Cheirando, mordendo, lambendo e tentando abrir a caixa com suas garras e dentes. 
Uma vez satisfeitas suas curiosidades, eles abandonam a caixa aberta e retornam a seus afazeres de gatos. Na maioria das vezes saber o conteúdo da caixa de nada lhes vale, o conteúdo não é de seu interesse. Mas ele precisou constatar in loco.  
Essa curiosidade natural não é gratuita, nada na natureza o é. É essa curiosidade, aparentemente brincalhona, que irá treinar o filhote, que irá apurar seus instintos, que o ensinará a reconhecer o perigo, os inimigos, que irá fortalecer sua musculatura, afiar suas garras e dentes, que, enfim, irá azeitar sua maquinária, o tornará apto a sobreviver.  
Nem essa curiosidade natural, instintiva, o aluno médio tem mais. Até essa curiosidade primal - congênita a todos os animais (que também somos) - foi obliterada pela grande maioria de nossos alunos. É preciso deixar claro que ninguém (nem mesmo eu) quer o aluno debruçado horas e horas sobre os livros. Nada disso.  
Mas é preciso que ele seja curioso. O aluno médio atual não quer nem saber o que há dentro da caixa. Ainda que se abra a caixa para ele. Ele nem se interessa em dar uma espiadela pra dentro da caixa e ver se o conteúdo lhe agrada ou não. Falta-lhe até mesmo a curiosidade básica do animal. Curiosidade que não iria dar-lhe, obviamente, dentes e garras afiados ou faro apurado, mas que se traduziria em conhecimento, em capacitação. Tão necessários à nossa sobrevivência quanto uma musculatura tesa, pronta para explodir num salto, é indispensável à do gato.  
Filhotes de gato que não gostam de brincar: esses são nossos alunos. Nunca se tornarão gatos, portanto. Nossos alunos não são mais curiosos. E é a falta da curiosidade que irá matar o gato! A passividade ocupou o lugar de tal atributo. Não pensem, no entanto, ser essa passividade acompanhada por algum tipo de sofrimento, como erroneamente julgamos ser toda passividade. Não mesmo. É uma passividade cômoda, passividade de quem tem a certeza de que tudo lhe será provido sem esforço. Passividade de uma permanente leseira pós-prandial.  
O que fez apagar-se no aluno essa curiosidade? Professores não capacitados e insatisfeitos de suas funções e remunerações? A desestruturação das famílias, que muitas vezes nem podem ser reconhecidas como tal? Os valores em constante mutação? A permissiva progressão continuada? A velha lenda do sucateamento proposital do ensino público, pois é mais fácil governar ignorantes que esclarecidos, história que já ouço desde os tempos da ditadura militar?  
Não sei. Sinceramente não sei. Não percam o seu tempo, e fundamentalmente o meu, me perguntando o porquê do extinguir dessa curiosidade. Não sei, mesmo.  
Eu, tido professor, só o que faço, hoje em dia, é recolher os cadáveres. Não sei precisar os motivos de suas mortes, não realizo suas necropsias. Não tenho competência para tal. E também de nada me valeria se tal competência tivesse. Tão somente conheceria as causas. Não poderia, de qualquer maneira, reverter o quadro do defunto.  
As caixas estão todas por aí, disponíveis; hoje mais do que nunca, disponíveis. Não há interesse, contudo. E é a falta da curiosidade que irá matar o gato!  
Vivesse, hoje, no Brasil e fosse, Pandora, aluna de uma escola pública, sua notória caixa jamais seria aberta. Estaríamos todos, dos males do mundo, a salvo. Ou irremediavelmente condenados.  
Eu, de minha parte, um dia, quando for honesto o suficiente, talvez pare de (tentar) dar aulas. Talvez me torne tão simplesmente um criador de gatos

Postar um comentário

0 Comentários