Saudades de campear os matos e os terrenos baldios - que, à época, disputavam ainda espaço parelho ao das casas e estabelecimentos comerciais - à captura de borboletas, grilos, formigas, besouros, cigarras, louva-a-deuses e outros bichos para espetá-los com alfinetes em pranchas de isopor ou promover rinhas entre eles?
Saudades de trancar-me ao quarto e ficar a combinar tintas guache, a tentar aviar cores que só existiam em minha imaginação e, claro, sempre a falhar? De fechar-me à despensa e ali passar tarde a ler gibi e a chupar limão com sal? De viver perigosamente, a misturar, indiscriminadamente, sem seguir as receitas do livrinho de fórmulas seguras, os 25 reagentes do Laboratório de Química Guaporé, sentindo-me um cientista louco?
Saudades de mascar chicletes Ping-Pong e colecionar as figurinhas de super-heróis Marvel que envolviam a guloseima? De jogar roleta-russa com a bala Soft? De esgrimir com o pirulito Zorro? Do canto de sereia da Flauta de Pã do velho sorveteiro? De rolar um dadinho com os Dadinhos Dizioli e a fumar um cigarrinho Pan de chocolate? De lanchar um pacote de bolachas Mirabel com um belo copázio de groselha vitaminada Milani? De deixar dissolver na boca uma bala Chita? De lambuzar a boca com um Teta de Nega?
Saudades das carteiras escolares com tampo de madeira e pés de ferro fundido aparafusados ao chão? Do alfabeto escrito em letra cursiva e de fôrma ao alto do quadro-negro (que era negro de fato)? De decorar as tabuadas e os tempos verbais? Dos ditados de n palavras? Das composições? Das filas formadas no pátio antes do início das atividades letivas de cada dia? De cantar o hino em datas cívicas? Dos desenhos mimeografados, sempre cheirando a álcool, que recebíamos para colorir? De ler Monteiro Lobato, e as coleções Vagalume e Para Gostar de Ler?
Saudades de jogar futebol em campinhos improvisados em qualquer terreno ocioso? De jogar bets (ou taco) nas ruas pouco frequentadas por carros? De confeccionar pipas com bambu e papel de jornal? De descer ladeira a bordo de carrinhos de rolemã? De atear fogo aos matos? De quebrar lâmpadas dos postes de iluminação pública com estilingadas?
Sim, puta que o pariu que sim. Saudades da porra de tudo isso e de mais um monte de coisas, as quais certamente esqueci de mencionar. Não são, no entanto, as maiores saudades, não são do que sinto mais falta. São das traquinagens, das molecagens, das travessuras, das sacanagens aprontadas com os amigos - o que hoje essa geração aviadada de hoje chama de bullying -, do que sinto mais falta, que iam desde a indefectível piroca desenhada na carteira do amigo, das piadas com as mães, das tachinhas ou da cola superbonder na carteira, de baratas no estojo, até molecagens com requintes artesanais, como pegar uma ameixa seca, daquelas pretas, fazer-lhe um furo, retirar parte da polpa, substituir com tinta gauche pastosa preta, ofertar para o primo comer e ficar vendo a saliva preta lhe escorrendo pelos cantos da boca e ele, com cara de estranhamento, dizer : - acho que essa ameixa está estragada. Aí, foi impossível aguentar, rolei de rir.
As travessuras também eram aprontadas com tios e tias. Todo Natal, uma das minhas tias maternas montava lá um presépio, que contava com uma pequena luzinha vermelha a iluminar a manjedoura do Nazareno. Não dava outra : eu desrosqueava a tal e a escondia em algum lugar da casa, em alguma gaveta, dentro de caixas de pasta de dentes etc. Cheguei, uma vez, a misturar alguns comprimidos laxantes do meu avô no frasco (na época, os compridos vinham em frascos, e não em cartelas blister) dos comprimidos para cólica de uma outra tia. Colocava revistas pornô que meus tios escondiam embaixo de suas camas embaixo da cama do meu avô. Fazia bigodinhos, cavanhaques e escurecia os dentes nos pôsteres de cantores e galãs de novela da época que minhas tias afixavam nas partes internas das portas de seus guarda-roupas.
Quieto e tímido que sempre fui, eu era o último dos sobrinhos sobre quem recaía a desconfiança pelo malfeito.
Uma das sacanagens mais divertidas de eu ter levado a cabo não foi bem contra um amigo, antes pelo contrário, contra um sujeito dos mais desprezíveis, mas que era amigo do meu primo, o da ameixa, então, eu acabava , desgraçadamente, convivendo com o tal vez ou outra. Embora não seja o seu nome real, chamarei-o aqui de Alberto Di Nápua.
Alberto Di Nápua é um dos seres mais caras-de-pau e espaçosos com que já travei contato ou mesmo de que tive notícias. Mais folgado que cu de avestruz. Oportunista, aproveitador, um chupim, um sanguessuga. Pior que um vampiro, pois, ao menos, este último tem a decência de esperar ser convidado para adentrar nossa casa; Alberto Di Nápua dispensa esses protocolos, chega, entra e já vai se assenhorando, do sofá, da geladeira.
Não obstante, era um cara tido como bem-apessoado, com um bom papo, uma lábia viscosa e gosmenta, como cabe a todo safardana. Nessa época, havia um evento muito comum entre os adolescentes de então, que eram as brincadeiras dançantes. Meninos e meninas (não existiam menines) se reuniam na casa de um deles, ligavam a vitrolinha no aposento mais ancho da casa, geralmente a sala, as luzes eram apagadas, as meninas eram convidadas e a contradança começava, começava o mela-cueca.
Então, num belo dia, numa bela noite, na verdade, numa bela e fatídica noite, aconteceu uma brincadeira dançante no local que, a partir de então, ficou conhecido como O Covil do Jonas. Minha irmã, cujo controle de qualidade para rola era dos mais baixos então, deixou-se enredar pelos "encantos" do pilantra Alberto di Nápua. Passaram a noite inteira se esfregando num dos quartos da casa, ao som do que havia de mais brega na época.
De sacanagem, eu, meu primo e mais outros, íamos à janela do quarto, pelo lado de fora, e ficávamos gemendo, fazendo sons de volúpia e excitação, para quebrar o clima dos dois. Mas a sacanagem não parou por aí.
Depois da brincadeira dançante, minha irmã não queria nunca mais ver o di Nápua, esse, no entanto, apaixonou-se, queria manter contato; na época, morávamos em outra cidade. Minha irmã desconversou e dispensou o tal. Acontece que o safardana conseguiu nosso endereço com meu primo e enviou uma carta para minha irmã, uma carta toda melosa, se declarando, dizendo que gravara uma fita cassete com as músicas dançadas por eles e que não se cansava de ouvi-la e de se relembrar do que ele dizia ter sido o melhor dia de sua vida. Minha irmã leu a carta, xingou quem fosse que fornecera o endereço e jogou o envelope ao lixo.
Foi a ruína do Di Nápua. Peguei a carta do lixo, li e, uma vez que o Di Nápua não conhecia a caligrafia da minha irmã, decidi responder, me corresponder com o canalha como se fosse ela, tudo num tom de deboche e ironia dos bons. Emulei lá uma letra toda redondinha, que me pareceu ser feminina, escrevi a carta e enviei. Nesta carta, para que as futuras correspondências não caíssem nas mãos da minha irmã, pedi ao Di Nápua que ele mandasse a resposta a um outro endereço, para evitar meus pais e meu irmão chato. O endereço que forneci era o de um amigo meu, que aceitou ser o receptor das missivas e me passá-las depois.
Meu primo e eu também trocávamos cartas e, em sua carta seguinte, ele me contou da carta que "minha irmã" havia mandado ao Di Nápua e que o mesmo se encontrava em estado de êxtase. Disse-me que ele carregava a carta consigo para cima e para baixo, dentro do livro de Geografia, sua disciplina favorita. Depois de me cagar de rir e me limpar, mal acreditei naquilo, mal acreditei que aquele asno pudesse ter acreditado que a autoria da carta fosse mesmo da minha irmã - a carta era uma zoeira só.
Outras e outras cartas do Di Nápua chegaram à casa do meu amigo e me foram repassadas. Cada vez mais derretidas, cada vez mais apaixonadas. E eu respondia a todas. Então, depois de umas quatro ou cinco cartas, eu já cansado daquilo, feito criminoso que quer ser pego, resolvi subir o tom de deboche das cartas de uma vez por todas, impossível alguém crer que aquilo não fosse uma fake letter.
Três cartas depois de eu ter chutado de vez o balde, contou-me o meu primo, o Di Nápua chegou pra ele e disse : "acho que ela tá tirando sarro da minha cara..."
Há!Há!Há! Ele começara a desconfiar que aquilo era uma tiração de sarro, mas ainda acreditava que era minha irmã! Pããããããããta. Aí, meu primo, condoendo-se do pústula, revelou a verdade, disse que, o tempo todo, fora eu quem me correspondera com ele.
Além da diversão, ganhei um bônus : Di Nápua nunca mais me olhou na cara.
Repetindo, mais do que tudo que listei no início da postagem, é dessas molecagens de que mais sinto falta, de pregar peças.
Os anos, no entanto, foram passando, implacáveis, intransigentes, alheios à nossa determinação ou vontade, as velhas amizades desfazendo-se ou, no mínimo, distanciando-se. Os anos, no entanto, foram transcorrendo, irrepresáveis, as responsabilidades mais se acumulando, o tempo das molecagens ficando para trás. Os anos, no entanto, foram correndo sem escala em seus trilhos, céleres a ponto de não mais nos permitirem gozar a vida, e não rápidos o suficiente para logo alcançarmos a morte.
Porém, mesmo acorrentado, amordaçado e lobotomizado, há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração. E esse moleque despertou há algumas semanas, tão traquinas, sacana e engenhoso como nos velhos tempos.
Meu cunhado por parte de irmã, o inoxidável Professor Euclides, completou 70 anos em fins de setembro próximo passado. Semana seguinte, no sábado, uma festa surpresa foi celebrada em sua homenagem. Festão bom, com chopp a rodo e à vontade, como já relatei na postagem Aniversário de 70 Anos.
Apesar de ser o meu núcleo familiar, sabendo todos da minha aversão a festas e a interações sociais, minha irmã e sobrinhos encaminharam o convite à minha esposa.
- Vai ter festa surpresa pro Euclides no sábado dia tal, eu e o Raul vamos, você vai?
Normalmente, minha resposta seria "não". Acontece que o Euclides é uma figuraça, um sujeito ímpar, gosto dele, e disse que sim, que iria - e olhares de incredulidade pousaram sobre mim.
- E o presente? - minha esposa me sacaneou.
Sacaneou porque sabe que eu não sei comprar presente nem pra mim, quanto mais para os outros.
Foi aí que o moleque que vive sempre no meu coração, acordou. Acordou, bocejou, espreguiçou-se e já pôs uma risadinha de filho da puta no canto da boca.
Lembrou-se, o menino, de uma foto antiga, já meio avermelhada, da década de 1970, a julgar pelas vestimentas e pelos bastos bigodões dos varões nela retratados, em que o Euclides, na flor da idade, encontrava-se em meio a uma grande turma de funcionários das Faculdades Barão de Mauá. Alguns deles, eu até cheguei a conhecer, quando também trabalhei um período na mesma empresa, de 1988 a 1996.
Entre aquela velha guarda da Barão de Mauá, o mais emblemático de todos os funcionários que por lá passaram, um patrimônio histórico tombado da Instituição : o seu Vicentini.
Velho safado, todo cheio de graça com as alunas, galanteador das antigas, futriqueiro que só ele e organizador de todos os bolões de apostas que corriam na faculdade. Desde bolões de jogos de futebol até de quem seria demitido ou morreria até o fim do ano. Figuraça. Falecido já há uns anos, com mais de 90 anos de longevidade. Até escrevi um texto em homenagem ao velho Abutre aqui, que foi dos que mais gostei de ter escrito : Eu Sou o Seo Vicentini.
Tenho essa foto há tempos, sem ter a menor ideia de como ela acabou parando em minhas mãos. Encontrei-a dentro das páginas do livro Viva o Povo Brasileiro, do João Ubaldo, e lá ela continuou. Logo que a encontrei, pensei em já devolver para o Euclides, mas achei melhor não. Aquela relíquia merecia uso e destino mais especiais. Não fazia ideia de quais, mas guardei-a comigo, mesmo assim.
E agora, esse destino especial se me revelara, através do moleque morando sempre no meu coração. Disse-me o moleque : - vamos aprontar uma com o Euclides, vamos pegar essa foto, colocá-la num porta-retratos, embrulhá-la para presente e naquela etiqueta que vai por fora com o nome de quem está presenteando, escrevemos : Luiz Vicentini.
Topei na hora a sugestão do moleque, e ri.
- O que foi? - perguntou minha esposa, já desconfiada de alguma merda.
Contei-lhe qual seria o nosso presente ao Euclides.
- Nosso coisa nenhuma, que eu não vou entrar nessa, não.
E, de fato, não entrou. Comprou lá um perfume do Boticário, pôs o nome dela e do meu filho na etiqueta - deixou o meu de fora.
Perfumes do Boticário... que coisa mais sem originalidade... aliás, o Euclides ganhou tantos produtos do Boticário que, caso queria, dá pra ele iniciar uma franquia.
O meu era original. Único. Inspirado.
Os convidados foram chegando e depositando seus presentes numa caixa logo à entrada da festa. O festão transcorreu tudo bem, cada um foi pra sua casa e tudo certo.
Dia seguinte, domingão, perto das dez da manhã. Eu já dera uma arrumada na casa, acabara de me sentar à sacada, ligar meu toca-CD e abrir o primeiro latão do dia. Minha esposa, na cozinha, a começar a mexer com a comida do almoço.
Toca o telefone. O da minha esposa. Ela leva lá uns três ou quatro minutos de conversa e aparece na sacada.
Minha sobrinha, filha do Euclides, havia ligado. Perguntando se fora eu quem dera o porta-retratos com a turma da Mauá para o pai dela. Porque, de manhã, na hora em que começaram a abrir os presentes e viram o nome Luiz Vicentini na etiqueta, assustaram-se, arrepiaram até os cabelos do cu, um calafrio sobrenatural percorreu a espinha dos presentes. Mesmo o atual marido de minha sobrinha, ao ser colocado a par de quem foi o Vicentini, fez o sinal da cruz.
Pãããããta que o pariu!!!!! Gargalhei com gosto. Um sustinho, eu até havia imaginado, mas não aquele terror todo.
Minha esposa disse que sim, que havia sido eu quem dera o porta-retrato. Disse que ela não devia ter confirmado, que deveria dizer que não sabia de nada, só para estender um pouco mais o temor supersticioso de meus familiares, mas era tarde.
Mais tarde, meu sobrinho, filho do Euclidão, que não estava presente na hora da abertura dos presentes e só ficou sabendo de tudo mais tarde, me mandou uma mensagem de voz, também rindo muito e dizendo que o pai havia gostado demais do presente, que ficara emocionado em rever todos aqueles amigos da foto, muitos já falecidos.
Eu não poderia ter logrado maior sucesso : agradei ao aniversariante e deixei minha irmã com o cu na mão.
Até hoje, três semanas depois, fiquei sabendo que tem quem ainda desconfie de algo mediúnico.
Outras traquinagens, uma vez que o moleque saiu de sua hibernação, suceder-se-ão a essa em breve?
Não, quase certamente que não. Mesmo que a ideia para elas surja, não levarei a execução a cabo.
Por quê? Simples. Não há mais graça em brincar com quem não entende a brincadeira. Não há mais graça em rir daqueles que não riem mais. Dos que desaprenderam de rir.
Valha-me Santo Oswaldo Montenegro : "Eu preciso é te provar, que ainda sou o mesmo menino, que não dorme a planejar travessuras e fez do som da tua risada um hino".
Em tempo : mais que uma homenagem ao Euclides, o presente foi um tributo ao velho Abutre Vicentini, que não só bem quereria ter ido à festa, como muito teria merecido participar dela. Se é que não estava por lá, a tudo sobrevoando.
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