Em uma recente publicação minha, Penso; Logo, Deprimo-me, pressupus que todo ser - tenha ele neurônios ou processadores, veias ou circuitos, seja ele à base de carbono ou de silício, que adquira a capacidade (e a use) de pensar sobre a própria vida e, portanto, segundo Descartes,um ser vivo, pode, ao fim de sua ponderação, julgar que não há validade ou sentido algum em um sua existência, e decidir pelo autoextermínio. Eu disse isso a respeito de uma suspeita de um suicídio praticado por um robô sul-coreano dotado de IA, que fazia as vezes de um contínuo em uma repartição pública.
Pressupus, igualmente, a inexistência de suicidas nas outras espécies animais tendo por hipótese algum impedimento biológico cognitivo de suas massas cinzentas e/ou a falta de tempo para dar tratos à bola sobre a vida; afinal, a vida selvagem, in natura, só lhes dá tempo de ocuparem a cabeça com uma única urgência : manterem-se vivos. Viverem.
Então, o Pateta, leitor das antigas do Marreta, talvez tendo sua atenção chamada a isso, comentou : "o Lemingue pode ser considerado uma animal que comete, como espécie, um tipo de suicídio? Você é professor de biologia certo? Conheci esse bichinho em uma história do Barks".
O Barks a que Pateta se refere é Carl Barks, o maior ilustrador e roteirista que já passou pelos estúdios Disney, criador, entre outras coisa, tão-somente de Patópolis e toda a pataiada que a habita. E a tal história é a do quadrinho abaixo, onde uma legião de lêmingues, pequenos roedores que habitam a Tundra, um tipo de preá do Ártico, lança-se ao mar do trampolim de um penhasco em aparente suicídio coletivo.
Bom, como disse Jack, o Estripador, vamos por partes. Primeiro, fica aqui uma recomendação : se quiser saber de algo, com relativa confiabilidade, sobre coisas da natureza, fuja dos professores de Biologia, malemal conhecem informações de livros de zoologia, botânica etc do início do século passado.
Porém, neste caso, eu possuo certo conhecimento do assunto. Sabia do mito dos eventuais e supostos suicídios coletivos dos lêmingues (embora não soubesse de sua origem antes de pesquisar para esta postagem ) e sabia também do desmentido.
Antes, o desmentido. Os lêmingues NÃO são suicidas grupais. É fake. Os fofos roedores não pertencem a nenhuma seita apocaliptica ao estilo Jim Jones. É bem verdade que aos olhos humanos, que a tudo insistem em interpretar, julgar e nivelar ao raso de suas percepções, hábitos, emoções e de sua prepotência em achar que o resto do Universo também se rege por seus equivocados prismas, alguns atos dos lêmingues podem, sim, parecer tentativas de suicídio coletivo.
A verdade é que os lêmingues são os grandes fodelões, os grandes metelões, os Zés Mayer do reino Animal. Em certos períodos de cio, em certas temporadas de caça às buças, a população chega a decuplicar. Boom populacional que, obviamente, impossibilita que todo aquele bando permaneça naquele habitat, agora com recursos insuficientes de espaço, alimento, água etc.
O jeito, então, para garantir a mínima sobrevivência do bando, é pôr as patas na estrada, procurar por novos ambientes, por uma nova terra prometida onde jorrem o leite e o mel. Assim, os tarados roedores aventuram-se em longas jornadas migratórias em massa, em imensas romarias em busca da sobrevivência.
Contexto em que ficam expostos a inúmeros e desconhecidos perigos. Saem de sua zona de adaptação e passam a percorrer territórios estranhos e, no mais das vezes, como tudo na Natureza da lei do mais apto, hostis para quem não é biologicamente equipado a ocupá-los.
Relevos e climas aos quais não são adaptados. Alimentos que não conhecem e que podem não lhes ser palatáveis, digeríveis ou até mesmo lhes ser venenosos. Novos predadores contra os quais não desenvolveram nenhuma defesa e que, talvez, nem mesmo reconheçam como predadores, até ser tarde demais. Vírus, bactérias e outros patógenos contra os quais não têm nenhuma imunidade etc.
Migrar em massa e tresloucadamente pela sobrevivência é condenar grande parte daquela população à morte. Não migrar é condenar o bando inteiro.
E o mesmo ímpeto e afã que os lêmingues têm para fornicar, têm em seguir indetíveis em seu processo migratório. A nada reconhecem como obstáculo intransponível. Nada lhes pode parar. São feitos o Juggernaut, do universo dos X-Men.
Assim, por vezes, o bando pode dar de frente com, por exemplo, uma íngreme e escarpada montanha. Os lêmingues não são bons escaladores; ainda assim lançam-se à empreitada. Resultado : boa parte do bando vai despencando da montanha e virando patê de roedor ao sopé.
Outras vezes, um curso d´água, um rio, um mar, pode se interpor em seu caminho. Os lêmingues não são bons nadadores; ainda assim vestem seus trajes de banho e mergulham. Resultado : o gargalo da sobrevivência fecha a conta de mais um tanto deles.
Aliás, os lêmingues não são bons escaladores, bons nadadores, bons corredores nem nada. Só são bons metedores.
Dessa forma, o que pode parecer suicídio coletivo a olhos ignorantes, nada mais são que acidentes de percurso, que reduzem a população, de novo, a um nível aceitável e selecionam apenas os mais fodões entre os fodões.
Já o mito é muito anterior à supracitada história de Carl Barks. Remonta a antigas tribos indígenas da região Ártica, que acreditavam que os lêmingues eram animais que viviam além das estrelas e que, vez em quando, despencavam dos céus, dando a impressão de que, do firmamento, atiravam-se deliberadamente.
E o mito foi sendo passado de geração em geração, de século em século, inclusive, com o aval bem recente, diga-se a propósito, da Ciência.
Na década de 1530, o geógrafo Zeigler de Estrasburgo propôs que caíam do céu com as tempestades e depois morriam de repente com o crescimento do mato na primavera.
Na Enciclopédia Infantil de Arthur Mee de 1908 pode-se ler que os lêmingues “avançam em uma linha reta por montanhas e vales, através de jardins, fazendas, vilas, mananciais e lagoas, envenenam a água e causam febre tifoide (...) continuam até o mar, e provocam sua destruição entrando na água (...) É triste e terrível, mas se esse êxodo funesto não ocorresse, os lêmingues teriam deixado a Europa nua há muito tempo".
Mas foram os estúdios Disney que ajudaram a consolidar o mito do suícidio coletivo dos lêmingues para os dias atuais, no documentário White Wilderness, de 1958, que mostrava um bando de lêmingues a se jogar de um penhasco rumo ao mar.
O documentário não é uma animação, tão comum aos estúdios Disney, são cenas da vida selvagem. Cenas que renderam o Oscar de Melhor Documentário de 1959 aos estúdios Disney.
Porém, tempos depois, descobriu-se que o suicídio dos lêmingues não aconteceu naturalmente, foi uma montagem, um cruel e canalha efeito especial. Como não conseguiram filmar um suicídio em massa real - e nem poderiam, pois ele não acontece -, produziram um.
Uma investigação realizada em 1983 pelo produtor da Canadian Broadcasting Corporation, Brian Vallee, constatou a fraude da Disney.
A cena nem ocorre no mar, como sugere o documentário. Ela se passa no rio Bow, perto de Calgary, interior do Canadá, local que, inclusive, não é o habitat natural dos bichinhos. Os lêmingues foram trazidos de outra província, onde os realizadores pagaram a crianças esquimós para capturá-los.
Depois, a sequência foi montada com plataformas giratórias - a servirem de catapultas de lêmingues -, neve e planos bem fechados. Em certas partes do filme, pode-se ver que alguns lêmingues param na borda e voltam, tentando desistir do "suícidio".
Eram encurralados e jogados de volta à plataforma giratória. Foram mortos, exterminados. Para corroborar um mito. E nada há de montagem ou de efeitos especiais nos lêmingues que aparecem mortos a boiar na água. Estão mortos, mesmo.
A história de Carl Barks citada por Pateta é de 1955, portanto, anterior ao documentário, mas refletia também a crença do suicídio coletivo. Ao menos, nos quadrinhos de Barks, nenhum lêmingue foi assassinado.
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