Sempre dormi pouco. Durmo cada vez menos. E cada vez pior. Sono cada vez mais interrompido e entrecortado. Mesmo aos fins de semana ou nas férias, dificilmente permaneço deitado após as seis da manhã, mesmo que vá dormir depois da meia-noite.
Em parte, devo ter um relógio biológico meio fudido, um ciclo circadiano ferrado pelas atividades profissionais que exerci quando mais jovem, trabalhos noturnos e aos fins de semana. E em parte, porque gosto de ficar à toa, acordado e sem porra nenhuma pra fazer, então, acabo por me levantar cedo para cumprir com as obrigações do dia o mais rápido possível e maximar meu tempo de sacerdócio ao ócio.
Hoje, sabadão, acordei umas cinco e pouco da manhã, fiquei ainda enrolando (e rolando) um pouco no colchão, aproveitando os últimos resquícios da embriaguez de ontem. Percebendo minha movimentação, sabendo-me acordado, a cadelinha Pandora e a gata Nina saltaram para a cama, a primeira querendo lamber-me a cara e a segunda a mordiscar meu calcanhar.
Sem mais o quê, levantei-me, faltavam uns dez minutos para as seis. Coloquei a ração para as meninas - a outra gata, a Petruchia, mais arredia, também se achegou para o desjejum -, troquei a água de suas vasilhas, limpei a caixa de areia das gatas, troquei o tapete higiênico da cadelinha e reguei as plantas.
Cuidados e alimentados que já estavam, os seres vivos que dependem de mim, preparei a minha canecona de café com leite e canela de todas as manhãs e me pus à TV, assisti lá a um episódio da primeira temporada de House M.D - eram, então, sete e meia da manhã passadas. Escovei os dentes, vesti-me e meti-me à rua.
Primeiro : Banco do Brasil. Odeio ir a bancos. Fico ansioso (de verdade) sempre que tenho que usar caixas eletrônicos, receio de que eles engolirão o cartão, que não liberarão as cédulas do saque mas que registrarão que a retirada foi feita etc. Não gosto, mesmo. Acabou dando certo, peguei lá uns caraminguazinhos para o fim de semana.
Em seguida, na mesma avenida do banco, uns quatro ou cinco quarteirões adiante, entrei no supermercado. Também não gosto de ir ao mercado. Carrinhos se batendo pelos corredores, filas enormes do caixa, setores de produtos que vivem a ser mudados constantemente de lugar, o que dificulta a localização do que fomos comprar, produtos anunciados por um preço nas prateleiras e cujos códigos de barra acusam outro (sempre maior) ao serem decodificados pelo leitor óptico do caixa (e toca esperar um supervisor ou coisa que o valha para fazer a correção) etc etc. Acabou dando certo, também, foi até rápido, comprei lá fermento biológico e um pedaço de muçarela para uma pizza que farei mais à noite e outros víveres básicos, como a cerveja, por exemplo.
De lá, para a farmácia. Uma caixa de tadalafila 5 mg de uso diário com 30 comprimidos. R$ 14,60. Ou seja, menos de cinquenta centavos por dia para passar o mês inteiro de pau duro. Uma pechincha.
Resolvi, então, já que estava mesmo na rua, ir além das três paradas previstas e já cumpridas. Entrei na loja de conveniência de um posto de combustíveis para comprar alguns pães de queijo e levá-los para a esposa e filho, que ainda dormiam quando saí. Pedi os pães de queijo e, como eu já estava lá mesmo, como já eram umas nove da manhã, peguei também um latão de 473 ml de cerveja Lokal, R$ 2,99, uma merecida recompensa por toda a faina e o estresse já passados.
Sentei-me, então, ao banco de uma praça para degustar meu latão e, depois, tomar o caminho de casa.
Antigamente, as praças eram lugares de tranquilidade, de contemplação. Oásis de sossego e calmaria. Hoje, em sua maioria, estão tomadas por vagabundos e craqueiros. Ops, por vítimas da sociedade, por desafortunados que não tiveram as mesma oportunidade que eu, como, por exemplo, terem trabalhado duro desde os 14, 15 anos, de enfrentarem um batente diário de 8 ou mais horas com hora pra chegar, pra almoçar, pra sair e até pra cagar. São, de fato, uns pobrezinhos.
Não que não os haja nesta praça em que fui me sentar, mas pouco ficam por lá durante o dia, fazendo com que o referido logradouro ainda seja um lugar frequentável.
Sentei-me, pois, a um banco a poucos metros de uma das ruas que delimitam a praça. Não estava ali há cinco minutos e a porta de ferro corrugado de uma barbearia - aliás, barber shop - foi levantada. Uma barbearia de "manos". Por poucas laias e baixas estirpes, eu tenho desprezo maior que pelo tal do "mano". Levantaram a porta, colocaram uma dessas caixas de som enormes logo à entrada do estabelecimento e puseram a tocar lá músicas de "mano", rap, funk e outras merdas que tais. No mais alto volume.
Levantei-me com minha sacola de compras e com meu latão recém-iniciado e migrei para o outra ponta da praça, para o outro extremo de seu quadrilátero. Sentei e dei mais um gole em minha Lokal. Fiquei lá eu, a pensar na vida, a ver como a vegetação se recuperara rapidamente do rigoroso estio por que passamos neste ano, a admirar como as árvores, que ainda há poucos meses estavam sem uma única folha, esqueléticas e cadavéricas, voltaram a trajar seus vestidos de gala e de festa, a notar os musgos que lhes crescem nos troncos, uns cogumelos a brotarem em seus pés, algumas saúvas já no batente, uns tatuzinhos-de-jardim.
Do nada, ou melhor, provavelmente do quinto dos infernos, dois caras surgem à minha frente (um com uns vinte e poucos anos e o outro, talvez, com uns quarenta). Sapatos engraxados, calça e camisa sociais, gravatas, cabelos muito bem cortados e penteados. Nem precisaram se apresentar : dois testemunhas de Jeová.
O mais velho, então, deu-me bom-dia (são insuportavelmente educados) e perguntou-me se ele podia me passar uma mensagem. Primeiro, o "som dos manos" e, agora, os testemunhas de Jeová. O meu etílico momento de meditação estava mesmo perdido, definitivamente.
Resolvi divertir-me um pouco, também.
- Mensagem de quem? - perguntei
- De Deus - respondeu-me e notei que ele não tirava os olhos do latão no banco ao meu lado.
Induzindo-o à resposta que eu queria que ele me desse, continuei :
- E por que você acha que eu estou necessitando, a uma hora dessa, de uma mensagem de Deus? E por que Ele, em sua infinita sabedoria e bondade, não me enviou a Scarlett Johansson como mensageira?
O sujeito olhou para o mais novo e trocaram entre si aquele risinho de boca fechada, de condescendência, de quem se julga moralmente superior.
Ao invés de tirar o time de campo, o Jeová voltou à carga :
- Olha, senhor, não estou aqui fazendo nenhum julgamento de sua pessoa (que é como começa o discurso de toda pessoa que já julgou alguma conduta alheia diferente da sua; julgou e a condenou em todas as instâncias possíveis e recorríveis), mas notamos a bebida ao seu lado e, geralmente, pessoas que bebem a essa hora estão precisando de algum apoio, de alguma orientação espiritual.
Caralho. O cara não desistia. Como todo fanático.
- Bom, eu estou bebendo logo cedo. E você, que está orando e pregando logo cedo? Por que o meu vício precisa de mais ajuda que o seu?
De novo, as risadinhas de boca fechada. Abriu uma pasta de couro, retirou um folheto da igreja, estendeu-o em minha direção :
- Nosso salão fica nesse endereço, caso o senhor mude de ideia...
Interrompi-o. Naquela altura, eu estava quase arrependido de ter saído de perto da barbearia dos manos. Quase.
- Olha, agora vou falar sério com você. Eu gosto de beber cedo, você gosta de sair pregando cedo, de ter a ilusão de que é o portador da palavra do Senhor. Cada qual com seus vícios. Mas eu não abordei você na sua igreja querendo lhe converter ao meu, não quis tirar a revistinha Sentinela das suas mãos e trocá-la por uma lata de cerveja. Eu não despejo o meu vício sobre ninguém, só o despejo na privada. Daqui a pouco, em casa, vou mijar tudo o que bebi. Você, por outro lado, com ares superiores, sai pelas ruas a despejar o seu vício sobre os outras, a urinar a palavra do Senhor sobre azarados feito eu.
Façamos um trato : eu escuto a sua mensagem, o recado que o Senhor mandou para mim, e você me deixa mijar no seu pé, nesse seu sapato bonitão. E aí?
Enfim, capitularam, bateram em retirada.
Mas como disse, meu momento de meditação fora arruinado. Bebi o resto do latão, já morno, e fui pra casa.
2 Comentários
Esses gajos são uns chatos. Pior só os comunistas.
ResponderExcluirHá! Há! Há!
ExcluirVerdade. Nada é pior que os comunistas, que a esquerdalha.