02h51. Madrugada de sábado. Vodka-tônica no copo. Uma pequena e de pouca potência caixa de som com conexão bluetooth na mesa de fórmica amarela lascada nos cantos. Um aplicativo de música aberto no celular. Rubens decide ouvir Vinicius de Moraes e Toquinho. Digita seu pedido no campo de busca do aplicativo e lança a sorte de seus ouvidos ao aleatório do algoritmo.
No meio de um gole, uma canção da dupla que nunca ouvira antes. Rubens acende a tela do celular para saber-lhe o nome : A Carta Que Não Foi Mandada.
Rubens gostou bastante do título da música.
- Fiz isso algumas vezes, também já escrevi cartas que nunca foram enviadas, que nunca tive intenção de as remeter aos devidos destinatários - começa a se lembrar Rubens.
Ri consigo mesmo. Pausa a música no player do dispositivo, se levanta e vai se abastecer de uma nova dose na cozinha.
Rubens sempre gostou de escrever e enviar cartas, desde o que chamam hoje de pré-adolescência. Sempre gostou de recebê-las e lê-las, também. Guarda ainda pacotes de cartas em seus baús. Acondicionadas e amarradas em cruz com barbantes. Datando do início da década de 1980 a quase meados da de 2000, Rubens estima que deva ter guardadas cerca de trezentas cartas. Oitenta por cento ou mais delas, resultado da troca de correspondência entre Rubens e mais duas pessoas.
A primeira, um primo de mesma idade que a sua, talvez um ano mais novo. As trocas de cartas começaram quando a família de Rubens mudou de cidade, moraram por três anos na capital de um estado do Norte do país e, em seguida, mais dois, dois e meio anos em outra cidade de seu estado de origem, porém, no outro extremo do mapa em relação à sua cidade natal.
As cartas tratavam do que podiam tratar cartas trocadas entre dois meninos da época. Falavam de música (o rock dos 80 estava a eclodir), gibis, notas da escola, de suas timidezes frente ao chamado sexo oposto, de suas desilusões e aspirações. Inocentes, puros e bestas.
Não eram cartas curtas, de meia página de papel de carta. Eram extensos relatos e narrativas de seus dia-a-dias. Três, quatro, cinco folhas de caderno universitário, frente e verso.
A segunda, um amigo de faculdade, que permaneceu apenas por dois anos e foi embora para concluir o curso em sua cidade de nascimento. A amizade, no entanto, ficou. Corresponderam-se de 1993, 1994 até 2005, 2006. Iguais às do primo, as cartas trocadas com o amigo também se alongavam por páginas e páginas. Rubens contou mais de sua vida e de seus dias em cartas para o primo e o amigo do que quando se encontravam pessoalmente. Sempre se expressou melhor escrevendo do que falando.
O restante das cartas divide-se entre outros amigos, menos afeitos à caneta, namoradas, ex-namoradas, alguns cartões de aniversários, postais etc.
Rubens volta à sacada do apartamento. Senta e retrocede a música no player com a ponta do dedo. Quer ouvi-la do começo, com atenção, e imbuído de forte e positiva predisposição para gostar da letra da canção tanto quanto gostou de seu título, das lembranças que ele evocou. Não que sejam necessárias grandes predisposições para se gostar de uma letra do Vinicius vestida de uma música do Toquinho, mas dela Rubens se muniu.
"Paris, outono de 73, estou no nosso bar mais uma vez e escrevo pra dizer...", começa a letra.
- Puta que o pariu - exclama Rubens -, bar em Paris... é, meu velho, não é pra qualquer um, não. As cartas que eu nunca mandei, quando não no minúsculo e mofado apartamento em que morei em Mococa, as escrevi num boteco pé-sujo que havia na esquina do prédio.
E dá outra emborcada na vodka-tônica.
- Se bem que, pensando bem - pondera Rubens -, o Universo agiu com a mais justa equivalência entre os nossos talentos e os locais em que nos alocou, a mim e ao Vinicius, dois escritores de cartas nunca mandadas.
Outra entornada e segue a falar consigo mesmo.
- Um talento feito o do Vinicius mais que merece um bar em Paris, um bistrô, talvez até lhe seja de pouca paga. Já para um "talento" feito o meu, um apartamento mofado e um pé-sujo em Mococa são pomposas e imerecidas láureas.
Busca outra dose, dupla desta vez, e segue a se lembrar das cartas. As enviadas devem ter sido em número similar ao de recebidas, perto dumas trezentas. Da quantidade das escritas e não mandadas, Rubens se lembra perfeitamente. Vinte e oito. As têm até hoje, também.
Lembra-se que elas eram uma forma (a sua forma), geralmente de madrugada, depois de umas duas garrafas de vinho Canção, de conversar com a pessoa para quem escrevia, contar de sua vida, matar as saudades, talvez.
Estas, as não enviadas, se dividem entre o amigo da faculdade, namoradas, ex-namoradas e novas e pretendidas namoradas. Um galanteador à moda antiga, Rubens.
- Caralho! Escrevi até uma carta para mim mesmo - lembra Rubens.
- Pra mim mesmo... cacete! Minha alma sempre esteve mesmo a perigo.
Na caixa de som, a música segue : "É, a vida é assim, o tempo passa e fica relembrando canções do amor demais..."
- E não é essa porra que eu fico fazendo de sexta para sábado e de sábado para domingo, sentado aqui, entornando e relembrando canções do amor demais?
A música vai chegando ao fim : "É, existe sempre uma mulher para se ficar pensando... nem sei...nem lembro mais."
- E quantas dessas mulheres, Poetinha, que temos para ficar se pensando, pensam em nós também vez em quando? - pergunta Rubens à caixa de som.
Para não quedar em melancolia ainda mais profunda, Rubens faz um gesto brusco, a mão passando rente ao rosto, desferindo um tapa ao ar, afastando tal pensamento, como quem repele um mosquito incômodo, ou um petista.
Volta à cozinha para a última dose da noite. Nem acende a luz da sala desta vez. Pelo canto do olho, tem a certeza de ver o vulto de Yrina, a se esquivar feito gato pelos batentes da porta que dá para os quartos.
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