Várias vezes, ouvi a analogia comumente estabelecida entre nossas antigas memórias e as gavetas de um velho armário ou empoeirada cômoda, há muito não abertas e de cujos conteúdos - toda a sorte de papéis, bugigangas e quinquilharias - não nos lembramos ao certo.
Basta abri-las, no entanto, espanar as suas teias de aranha, arejar as suas naftalinas, que tudo começa a nos clarear de novo, e todos os espíritos do passado voltam a tomar corpo.
No meu caso é pior. Minhas memórias, sobretudo as da infância, não são gavetas de cujos interiores não me recordo : são gavetas das quais não me recordo. Não me lembro nem das gavetas!
Assim mesmo, de vez em quando, conforme vou assoprando uma recordação aqui, atiçando outra ali, cutucando outra acolá, gavetas insuspeitadas tornam a surgir e exumar miasmas de lembranças.
Como aconteceu quando escrevi a postagem anterior a esta, sobre o Oscar 2025. Resumidamente, digo que a realidade que o filme pretende perpetrar como sendo a realidade de toda uma nação é apenas uma realidade particular, de algumas famílias que perderam entes queridos para a luta armada da esquerda. Que a realidade de minha infância e da grandessíssima maioria da população da época nada teve a ver com o que o filme quer tornar em verdade oficial. Pelo contrário, tive uma infância tranquila, agradável, segura e, se não rica, próspera e divertida.
Disse que nunca conheci ninguém, nem parentes, amigos, vizinhos, professores etc, que tenha tido algum tipo de problema ou conflito com o governo vigente.
Terminada a digitação e a publicação do texto, ocorreu-me que isso não foi inteiramente verdade. Não chegou a ser um problema, mas conheço, sim, uma pessoa sob quem, ainda que rápida e momentaneamente, recaíram suspeitas de, no mínimo, ser simpatizante da comunistada e chamada a prestar esclarecimento.
Quem? Eu, mesmo. Euzinho da Silva. Quando estava no primeiro ou segundo ano do primário, portanto, com 7 ou 8 anos.
Aconteceu o seguinte, ou eu me lembro de ter acontecido como narrarei.
Lá um belo dia, recebemos um desenho mimeografado para colorirmos das mãos da professora, daqueles roxos, ainda recendendo a álcool, em cujas folhas imediatamente dávamos uma cafungada assim que nos caíam em mãos, um desenho comemorativo pelo 25 de Agosto, o Dia do Soldado.
Era prática pedagógica comum, em toda data comemorativa mais relevante, recebíamos um desenho mimeografado alusivo a ela para colorirmos.
Nunca gostei de colorir desenhos, nunca fui bom nisso. Não sei se nunca gostei porque nunca fui bom ou o contrário, se nunca fui bom porque nunca gostei. Mas enfim, eu os coloria. Mesmo porque eram desenhos de traços bem simplistas, com grandes espaços, sem muitos detalhes. Por exemplo, um Saci, em comemoração à Semana do Folclore, a gente coloria rapidinho, um lápis marrom, um vermelho e pronto.
Porém, o do Dia do Soldado assustou-me. Um militar, de ombros muito largos a ocuparem toda a largura da folha, de quepe e com o peito condecorado com umas trezentas medalhas!!! Uma miríade de medalhas, todas muito pequenas, cheias de detalhes, de fitinhas, de estrelinhas, uma desgraça. Nem habilidade, nem vontade, nem paciência para colorir tudo aquilo habitavam em mim. E teríamos que entregar até o final do período letivo.
Além disso, também teríamos que entregar 10 exercícios de tabuada até o soar do sinal da última aula.
Como sempre preferi fazer contas do que pintar, resolvi me lançar primeiro ao exercícios de tabuada. Quando os encerrei, percebi que faltava nem meia hora para o fim da aula. Meio que revoltado e de saco cheio com tudo aquilo pra pintar, não tive dúvidas, pratiquei um ato de rebeldia : peguei um lápis de cor qualquer, um só e pintei o soldado inteiro com ele. Rosto, cabelo, quepe, farda, medalhas, tudo de uma cor só. E tudo meio rabiscado. Coloquei o desenho por debaixo da folha com os exercícios de tabuada e entreguei para a "tia", que estava guardando os trabalhos da sala toda numa pasta.
Tentei achar na internet o tal desenho do Dia do Soldado, mas o mais próximo que consegui foi este abaixo, que, acreditem, é bem mais simples e menos detalhado que o que recebemos. Bem menos.
No dia seguinte, ao fim da aula, a professora pediu que eu esperasse todos saírem e aguardasse mais um pouco, precisava falar comigo. Falou que achou estranha minha pintura e me deu um bilhete convocando meus pais para uma conversa - na época, nem telefone fixo tínhamos em casa.
Minha mãe recebeu com estranheza e surpresa o bilhete, eu nunca, até então, dera algum tipo de trabalho na escola. Eu disse que não sabia o motivo da convocação.
Fomos, então, dois dias depois, conduzidos pela professora à sala da direção, onde minha obra-prima foi mostrada à minha mãe. A diretora se mostrou preocupada. Primeiro, pelo descaso com que realizei a tarefa de colorir a gravura, comportamento que não me era característico. Segundo, pela cor com que eu colorira o soldado.
Ah, esqueci de dizer : pintei o soldado todo de vermelho. Não foi de propósito. Puto da vida como eu estava na hora, mal vi a cor que pegara, foi puramente aleatório, mesmo, por acaso. Imagina se uma criança de 7 ou 8 anos iria saber o significado ideológico da cor vermelha?
Inquirido, respondi o que narrei aqui, que não gostava muito mesmo de colorir e que quando acabei os exercícios de matemática e vi que não daria tempo, peguei o primeiro lápis que apareceu e rabisquei tudo.
Lembro da diretora dizendo que soldados vestiam ou verde, ou branco ou azul, que qualquer outra cor era um desrespeito etc. Amassou a minha pintura, jogou no cesto de lixo e deu-me um desenho novo do Dia do Soldado para eu levar para casa e trazer no dia seguinte já colorido.
Só fui entender o problema da cor vermelha muito tempo depois, já adolescente, e toquei no assunto um dia com minha mãe, nem sabia se ela iria se lembrar. Ela se lembrou. Também lembrou de que, assim que eu voltei para sala de aula, e ficaram apenas ela, a diretora e a professora, perguntaram se tínhamos algum vizinho, conhecido ou parente de quem eu pudesse ter ouvido algo a respeito. Não, não havia.
Quando meu pai tomou conhecimento do acontecido, ficou meio desconfiado de um tio por parte da minha mãe, um sujeito meio contestador, que declarava não gostar mesmo do atual governo, xingava o Delfim Neto, dizia que lera As Veias Abertas da América Latina e outras bravatas. Mas ficava só nisso, bravatas de churrascos de família. Jamais ouvi a palavra comunismo, socialismo ou coisa que o valha da boca dele.
Abaixo, colorido no paintbrush, uma vaga amostra de como deve ter ficado meu soldado de um tom só. Daí para pior. Para muito pior, aliás, pois o colorido não ficava contido em seus contornos, comportado em seus limites com o branco do papel. Muito pelo contrário, extrapolava-os alucinadamente, passava freneticamente por cima deles : de cima para baixo, de baixo para cima, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, em diagonais ascendentes, em diagonais descendentes.
Coloquei naqueles rabiscos vermelhos toda a ira de minha frustração de saber que não poderia concluir uma tarefa insignificante a tempo.
Eis o Soldado Vermelho.
3 Comentários
Rá rá rá.
ResponderExcluirJá podes te gabar e pedir pensão à Comissão da Verdade por ter sido perseguido pela ditadura....
Eu também tive "uma infância tranquila, agradável, segura e, se não rica, próspera e divertida" mas meu pai era militar Caxias, louvava os governos militares e apoiava a tortura. Tivesse tido um pai jornalista ou deputado que escrevesse ou falasse publicamente contra os governos militares, talvez minha (e a sua) infância tivessem sido um pouquinho diferente.
Sim, sem dúvidas elas teriam sido bem diversas do que foram.
ExcluirE sabe que eu não tinha pensado nisso, pleitear a famosa Bolsa-Ditadura, que tantos "cpmbatentes" da ditadura receberam ou recebem até hoje?
A respeito da bolsa-ditadura, Millôr Fernandes, amigo de muitos que receberam o "benefício", entre eles Jaguar e Ziraldo, não quis a indenização e foi genial (como sempre) a esse respeito : minha luta contra a ditadura não era poupança. Multitalentos, Millôr tinha um a mais que seus amigos : decência, vergonha na cara.
O mesmo Millôr disse uma vez a Chico Buarque : desconfio muito do idealista que lucra com seu ideal. Sem saber o que dizer, Chico saiu-se com um recurso bem comum aos esquerdistas : deu uma cusparada na cara de Millôr. Mas errou o alvo.
Tenho um sobrinho daltônico. Um dia ele pintou a copa de uma árvore de vermelho. Só faltou alguém falar "cripto-comunista!"
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