Certa vez, há muito tempo, creio eu que em tom de piada (ou talvez não, vá saber), ouvi que o segredo da maior longevidade dos casamentos de antigamente era o tamanho das residências. Nas moradias muito mais amplas de então, os casais não se encontravam tanto, não se esbarravam a todo momento, podiam mesmo passar horas sem verem um as fuças do outro. Ainda que uma piada, um chiste, faz sentido. Menos contato, menores chances de desentendimento.
Hoje, em casas menores e apartamentos mais ainda, o casal se vê e se tromba o tempo todo, na sala, na cozinha, no banheiro. A possibilidade de um recolhimento pessoal é praticamente nula, se um liga a TV da sala, o outro não consegue ouvir música ou realizar uma leitura no quarto.
Privacidade quase zero, mais esbarrões, mais atritos, maiores as chances de farpas e faíscas em um relacionamento sob o mesmo teto, em um enlace matrimonial.
Traçando, agora, um paralelo que me ocorreu, parece-me que a internet possa estar a causar danos semelhantes em algumas amizades antigas, nascidas no mundo real.
Antes do advento da internet, sobretudo das redes sociais e dos aplicativos de mensagem, os amigos, ainda mais adultos, já a carregar o peso das responsabilidades do trabalho e do sustento da família, muito pouco se viam, se encontravam pessoalmente, falavam-se bem menos, e sempre presencialmente; no máximo, em rápidas chamadas telefônicas.
A casa das amizades era extensa e ancha, praticamente um latifúndio.
A internet diminuiu essas acomodações. As redes sociais e os aplicativos de mensagem permitiram que os amigos, que antes se reuniam apenas em ocasiões especiais, passassem a se "ver" e a se "encontrarem" todos os dias, várias vezes por dia, quantas quisessem. E num ambiente, o virtual, em que as pessoas podem facilmente perder certos filtros sociais, certos limites de boa vizinhança que uma conversa cara a cara impõe naturalmente.
Mais contato, mais conversas jogadas fora, menos filtros, mais chances de uma brincadeira que possa ofender a um deles, mais chances de mal-entendidos, mais chances do término da amizade.
Essa analogia com a piada dos antigos e duradouros casamentos me surgiu porque desconfio que tenha sido bloqueado no tal do whatsapp por um amigo de semilonga data (para quem já beira os 60 anos, é claro), cerca de quinze anos de amizade. O Henri. Conheci-o, egresso da cidade de Itatiba, numa escola em que lecionei por tempos.
Formado em filosofia, um tipo bem peculiar, excêntrico, quietão, avesso a aglomerações, dado ao silêncio e à contemplação. Com ambos os pais surdos-mudos, a primeira língua que aprendeu não foi o português, sim a Libras, a língua dos sinais. Embora eu tenha cá pra mim que cada um nasce com uma índole imutável, isso pode ter contribuído, potencializado, o seu apego ao silêncio e à introspecção. Antes de fazer a faculdade de Filosofia, foi seminarista - hoje, declara-se um agnóstico com sérios flertes com o ateísmo -, e Henri é bem mesmo aquele sujeito que vejo confortável em uma vida reclusa, monástica.
Nossas visões pouco ou nada otimistas do mundo e da humanidade se identificaram logo de cara e iniciamos nosso convívio, que foi mantido até uns poucos meses, mesmo depois que ele se removeu para uma outra escola.
Por várias vezes, encontramo-nos para tomar umas; em minha casa, em certas oportunidades, na dele, em outras, ou no Bar do Renato, na maioria delas. Muito culto, lido e ilustrado, um papo de primeira, ponderadíssimo em suas convicções e ideologias, um raro de livre-pensador. Porém, sistemático e metódico como nenhum outro que conheci. Por qualquer filigrana, por qualquer pelo em ovo que julgue ter achado, corta imediatamente relações. Eu sempre soube disso, e também dos assuntos que eu não podia tocar com ele. Conhecia-lhe os calos. E jamais os pisei. Não que eu tenha conhecimento.
Então, acho que há uns três anos - antes os contatos para os nossos combinados eram feitos via ligações telefônica apenas -, tornamo-nos contatos de whatsapp. Com esse canal de comunicação mais fácil, rápido e direto, passamos a nos "falar" mais. Em geral, enviávamos um ao outro notícias, reportagens, textos etc, os quais achávamos interessantes e que julgávamos que, assim, o outro também os considerasse - e, claro, que ninguém é de ferro, alguma salutar putaria, também.
Em geral, sempre havia uma devolutiva de ambos, uma resposta, um comentário, se havia gostado ou não do material compartilhado, uma outra sugestão etc.
Então, há cerca de uns dois meses e meio, três meses, apesar de eu continuar com meu envio de costume, o Henri deixou de dar sinal de vida virtual. Claro que notei sua "ausência", mas lerdo que sou para essas coisas, só há uns dias me caiu a ficha de que ele poderia ter me bloqueado.
Pensei : - mas se ele tivesse me bloqueado, o whatsapp não teria me enviado uma notificação? Eu não perderia a capacidade de lhe enviar mensagens e visualizar as antigas dele? Analfabeto que sou em aplicativos em geral e suas funcionalidades, fui dar uma pesquisada e as respostas para minhas perguntas foram : Não e não. O Whatsapp não envia aos seus usuários nenhuma notificação de bloqueio, e esses continuam conseguindo enviar e visualizar normalmente as mensagens que mandam para quem os bloqueou.
Tomei conhecimento de que não há, a não ser que a própria pessoa lhe fale, um modo conclusivo de saber se um amigo o bloqueou. Há indícios, no entanto. O que eu achei, digamos assim, mais concludente, foi observar quantos "sinais de ticado" têm na mensagem que você enviou. Se tiverem dois sinais de visto, significa que a mensagem foi enviada e recebida; apenas um "ticado", ela foi enviada, mas não chegou ao destinatário, o que leva a duas opções : ou você foi mesmo bloqueado, ou a pessoa mudou o número do celular. Descartei de pronto a mudança de número, pois ele teria me inteirado dela, caso quisesse manter contato. Logo : fui bloqueado!
A questão subsequente era : por quê?
Pus-me, então, a retroceder no aplicativo para achar quando fora a última mensagem de Henri, ou a última com dois sinais de "ticado", a última que ele recebera. 17 de maio, às 02h32, madrugada de uma sexta para sábado. E a última mensagem enviado por ele : "você me mandou duas mensagens e apagou as duas. O que está acontecendo"?
Aí, me lembrei. Eu estava lá na sacada, ouvindo uma musiquinha, tomando umas, e fui responder à mensagem que um outro amigo me mandara mais cedo, pedindo que eu lhe indicasse algum site de onde fosse fácil baixar antigas HQs. Na primeira mensagem, que pensei ter inicialmente enviado a esse outro amigo, desculpava-me pela demora em atendê-lo, na segunda, o link de um site.
Acontece que, pelo avançar da hora, do sono e do meu estado etílico, acabei enviando pro Henri, cujo perfil se encontrava bem acima do desse outro amigo. Percebido o erro, apaguei as duas mensagens e as reenviei ao destinatário a quem eram de direito. Lembrei também de ter acordado no sábado, por volta das sete e pouco, e lido a mensagem do Henri.
Mas a manhã seria cheia, ir ao mercado, fazer o almoço, lavar o banheiro. Decidi que mais tarde esclareceria a questão. Tomei um cafezão e me pus à lida. E acabei esquecendo. Quando fui enviar a próxima mensagem a ele, uns dias depois, vi que tinha deixado de responder, mas deixei pra lá, já se passara bastante tempo.
A partir daí, todas as mensagens enviadas por mim contavam apenas com um sinal de "ticado". Tudo me leva a crer que Henri se ressentiu por eu tê-lo, como se diz no jargão internético, "deixado no vácuo".
Antes, eu fora bloqueado uma única vez. Por um primo, apenas um ano mais novo que eu. Amigo desde a mais tenra infância. Dá pra dizer que crescemos praticamente juntos. Na juventude, partilhamos vários gostos em comum por música, filmes, livros, gibis. Na idade adulta, mesmo morando em cidades diferentes, com filhos e diversas obrigações, continuamos, sempre que possível, a nos vermos, a visitarmo-nos.
Veio, então, a última eleição presidencial, da qual muito conversávamos por whatsapp. Lulopetista, ele defendia o descodenado Lula com as unhas e dentes do fanatismo e da obtusidade, ainda que um cara dos mais estudados, com doutorado e tudo. Eu retrucava e tudo corria dentro da normalidade, da divergência tolerante de um em relação à posição do outro.
Até que um dia, ele tava meio puto por não mais conseguir argumentos factuais para defender o Sapo Barbudo e esbravejou que jamais votaria em Bolsonaro, pois esse era um ignorante, que não dava o menor valor e apoio à educação. Respondi enviando a ele uma série de links para reportagens, que diziam de vários e vários cortes de verbas para a educação e a pesquisa cientìfica ocorridos nos governos anteriores de Lula.
Devolveu-me dizendo que era melhor que não mais conversássemos. E ponto. E assim foi desde então.
Nesse caso, não foi surpresa. Nem achei tão ruim. Afinal, como recomendava Olavo de Carvalho, corte relações com qualquer comunista que conheça, seja ou não parente.
Muito diferente do caso do meu primo, o do Henri foi apenas um mal-entendido. Pensei em fazer algo a respeito. Eu estava bloqueado em seu whatsapp, mas bem poderia fazer uma ligação telefônica pra ele. Mas que preguiça de continuar a cultivar essas relações humanas... De repente, acabei perdendo um bom parceiro de papo e de copo. Por outro lado, uma amizade a menos para ficar dando manutenção. Pesei as duas coisas e resolvi não fazer nada, a minha especialidade de uns tempos pra cá.
Ou melhor, fiz : bloquei-o também.
Pãããããããta que o pariu!!!!!
0 Comentários