Grave, circunspecto; ranzinza, até e muitas vezes. Mas, preponderantemente, preocupado. Sempre. Permanentemente. Perenemente preocupado.
Na certa, para as pessoas que me são mais próximas, preocupado é o principal atributo que me confeririam caso fossem perguntadas sobre mim; o meu traço mais marcante e reconhecível que ressaltariam caso fossem convocadas a fazer um retratado falado de mim.
Só não se arriscam a dizer estressado - ao menos, não em minha presença -, porque sabem do meu profundo ódio a tal palavra, estressado, principalmente ao uso genérico e sempre mal-intencionado que se faz dela. No geral, adoro as palavras; mas acontece, vez ou outra, de eu tomar ódio de algumas delas. Em relação às pessoas, isto é muito mais comum e corriqueiro.
Pré-ocupado : a me afligir por adversidades que ainda não se interpuseram em meu caminho nem ainda me confrontaram, adversidades, até, que possível e provavelmente nunca se interporão e me confrontarão; que só existem na minha cabeça, no mais das vezes.
Pré-ocupado : a me angustiar em busca de soluções para problemas que ainda não me caíram ao colo e às costas; problemas que só eu vejo (antevejo?), possivelmente porque eu mesmo - e só eu mesmo - os formule.
Um pré-ocupado com um quê de paranoia, bem definiu-me, uma vez, uma velha amiga.
Vivo sempre na defensiva de ataques que não me foram desferidos. Se não espero sempre pelo pior, tenho a certeza de que o melhor também não advirá. Sou um pré-ocupado terminal. Com metástases por todas as minhas células.
Antidepressivos, ansíolíticos? Besteira. São, com muita sorte (outro fator com o qual muito raramente sou agraciado), paliativos, anódinos; quando não, inócuos.
Quinta-feira agora, feriado de 1º de maio, já estava desperto às 03h40 da manhã. Quase às 05h00, na iminência de brotarem-me escaras de tanto rolar no colchão, pus-me de pé. Mijei, tomei um café preto, forte e amargo, coloquei ração para as gatas e a cadelinha, renovei-lhes a água e fui caminhar.
Acordei tenso e preocupado. Com o quê? Nada palpável ou objetivo. Uma preocupação generalizada, esparsa, difusa; não obstante, sólida, sapatos de concreto nos pés.
Em certo ponto da caminhada - o cérebro oxigenado e a receber suas primeiras doses de endorfinas sempre pensa melhor -, ocorreu-me uma velha piada, bem explicativa e didática sobre esse meu permanente estado de pré-ocupação. Um ligeiro chiste.
"O sujeito - por motivo não informado e contexto não revelado na narrativa - despencou-se lá do 100º andar de um arranha-céu. E veio descendo em queda livre; a cada segundo de tempo, sua velocidade sendo acrescida de 9,8 m/s. Então, quando passava pelo 30º andar do edíficio, uma pessoa à janela de um dos apartamentos perguntou-lhe : e aí, como você está, como vão as coisas, a vida? O sujeito respondeu : por enquanto, tá tudo bem."
É exatamente isto. Esta anedota retrata fielmente o estado de ânimo com que circulo pela vida. Acordo assim, vou dormir assim, trabalho assim, descanso assim, cozinho assim, vou ao mercado assim, escuto música assim, bebo assim, escrevo assim.
Por enquanto, ainda não me estatelei contra a calçada, mas sei que irá acontecer. E só consigo olhar nesta direção.
Talvez eu devesse, como muitos, talvez mais conformados, talvez mais desatentos à realidade, aconselhariam-me, aproveitar melhor a queda, ao invés de agoniar-me com a hora do impacto.
Não afirmarei aqui que sempre fui assim, afinal, são quase seis décadas de existência e minha memória - do mundo e de mim mesmo - é de pouco armazenamento, memória de TK-85. Mas posso garantir que sou assim há tanto tempo que sou incapaz de me lembrar de uma época em que assim eu não fosse; supondo, apenas supondo, dando o justo benefício da dúvida à velha e corrompida memória, que houve esse tempo mais leve, menos carrancudo.
Creio que, ainda que de forma não sabida, inconsciente, subconsciente, subliminar, até, todos saibam que estejamos caindo de um prédio de 100 andares. A grandessíssima maioria, no entanto, por falta de alguns pontos a mais no QI que lhe permita essa percepção, ou por puro e primal instinto de preservação da sanidade mental, não se dá conta de nossa situação de queda livre. Ou se dão e a sublimam, a abstraem; ou viveriam feito eu.
Creio que somente o suicida compreenda, de fato, a totalidade da queda livre existencial, que só o suicida tenha a clareza absoluta dela. Por isso, antes de virar catchup humano contra o duro asfalto da existência, enforca-se, degola-se, envenena-se, mete-se um balaço nas têmporas ou no céu da boca logo depois de passar pelo 30º andar.
6 Comentários
Você continua engraçado até quando está sendo trágico. Entenda isso como um elogio. Catchup humano é uma ótima imagem.
ResponderExcluirUma vez que é da natureza humana ser risível e patética, creio que seja normal (e inevitável) que a comicidade ande de braços dados com a tragédia.
ExcluirPrecisei pesquisar o que foi um TK-85.
ResponderExcluirDesconhecia a piada do suicida. Assim Tb está minha vida: até aqui, tudo bem.
Por falar em TK-85, necessitamos reprogramar o HD mental para deixar as preocupações de lado. É difícil, mas não impossível.
Abraços
Rapaz, você é a segunda pessoa, no curto espaço de dois dias, que usa essa expressão, reprogramar o HD mental. E é o que eu tento fazer em cada minuto do meu dia, uma briga interna constante. Mas não tá sendo fácil não.
ExcluirEu tenho até hoje um TK-85, completo e creio que funcional. Talvez um dia, eu escreva algo e poste sobre ele aqui. Viu que ele tinha absurdos 16 kb de memória?
Abraço.
Não vale a pena. Eu digo, mas muitas vezes assim também me sinto. Tento expulsar. Fecha o olho e curte a queda.
ResponderExcluirEu também tenho tentado exorcizar essa sensação, tentado curtir a queda.
ExcluirÀs vezes, tenho sucesso; no mais das vezes, não.
Mas sigamos, deixemos de coisas e cuidemos da vida.