Um Dia na Vida (18)

Fatos : ele tem um serviço de merda; um salário de merda; está a ver soçobrar em desgostos toda a dedicação, toda a disposição, toda a empreita, toda a esperança empenhadas na boa formação, instrução e educação do filho (esperança... raramente, ele tem coragem de usar esta palavra, e sempre que o faz, ela continua com o status de substantivo que sempre teve : abstrato); nem o sono/sonho, este irmão mais piedoso da morte, acolhe-o.
 
Sentado, então, finalmente, ao sofá, ao fim da noite, exaurido e exangue fisica, mental e animicamente, ele desabafa : tenho um serviço de merda, um trabalho de merda, em casa, decepções, um sono interrompido e sobressaltado. O que sobra ainda?
 
Nem se pode dizer que foram palavras ditas ao vento, o seu desabafo. Se fossem, ainda que não atingissem os tímpanos destinatários (ou que esses lhe fizessem ouvidos moucos), poderiam para outros serem carregadas, feito pólen aleatório e infértil. Mas não. Não são ditas sequer ao vento. São ditas ao vácuo. Meio em que, sabidamente, os sons não se propagam. Para efeitos práticos, elas sequer chegaram a sair de sua boca.
 
O filho, já deitado, finge que dorme. A esposa, entretida em algum aplicativo de joguinho colorido no celular. E também, acaba por refletir ele, o que queria que ela dissesse? O que ela poderia dizer que mudasse a situação dele? Talvez o aparente ignorar do seu desabafo seja ela a lhe dizer que as coisas são assim mesmo, que melhor aceitar, conformar-se, aguentar o tranco, fazer o quê? Talvez fazer que não o ouviu seja o melhor conselho que ela pode lhe dar. As mulheres sabem mais da vida que nós.
Na TV, um entretenimento vazio qualquer, um humorístico antigo, um programa de viagens ou de culinária. A TV apenas a amordaçar e a varrer para debaixo do tapete um silêncio incômodo e incomodado que se instalaria caso estivesse desligada. Um silêncio que imporia e berraria por conversas talvez igualmente incômodas; a TV a camuflar o elefante no meio da sala.
A cachorrinha trazendo a bolinha a ser arremessada para ela apanhar e trazer de volta, apanhar e trazer de volta, apanhar e trazer de volta.
 
Ele se cala. Olha para a noite, para as pernas de ébano dela, repletas de varizes serpenteantes dos rios amarelos dos postes da iluminação pública. Alguns relâmpagos acendem o horizonte ao longe. Ele já gostou muito da chuva. Agora, só pensa e se preocupa se ela se precipitará em breve ou se só pela manhã, quando de sua saída a pé para o trabalho; só pensa e se preocupa se ela lhe proporcionará uma madrugada de clima mais ameno ou um dia todo com os tênis e as meias encharcadas grudando-lhe nos pés.
Não se alegra mais com a chuva. Com os arcos-íris. Com as enxurradas. Com as aleluias.
 
Deitar-se-á em pouco. Sabe que adormecerá rápido, não tem dificuldade em desligar, mas muita em manter-se desligado. Sabe que o sono não se sustentará por muito; seja por inquietações subconscientes, seja pela velha e lassa bexiga a reclamar por ser esvaziada.
 
Trabalho de merda, salário de merda, ausência de satisfações e recompensas, bom sono inatingível...
Algum alento? Ainda que momentâneo, fugaz, fugidio, paliativo, ilusório, só um pouco de saliva passada na ponta do dedo para ajudar a virar a página do dia? 
A cerveja. Cinco ou seis latas diárias, a fazer as vezes de ansiolíticos e soporíferos, que poderiam muito bem ser receitados por um psiquiatra. Não que ele tenha alguma resistência em procurar por um psiquiatra e pedir pela medicação, não que ele tenha algum preconceito de que psiquiatra é coisa para doidos - embora seja. Acontece que a espera na fila do mercado ou da loja de conveniência para pagar a cerveja é bem menor do que teria que aguardar na antessala do consultório médico. Só por isso.
Hoje, porém, ele sente que adicionará ainda mais uma ou duas vodkas-tônicas.
 
Amanhã, ele lembra, será sexta-feira. Dia auspicioso para os trabalhadores comuns. Dia que antecede suas minialforrias. Para ele, no entanto, será só a anteantevéspera de uma nova segunda-feira.
 

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8 Comentários

  1. Talvez te sirva de inspiração. https://iclnoticias.com.br/a-falencia-da-profissao-de-professor/

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    1. Rapaz, um amigo, professor aposentado, me enviou essa notícia pela manhã. Infelizmente, não me foi novidade alguma. Só faltou o autor do texto, o tal doutor em História Econômica pela USP , dizer de quem é o projeto que sucateou a educação. Saber ele sabe, mas não diz ou admite de jeito nenhum.
      Hoje, eu voltaria a dar aulas em apenas duas situações, uma ruim e outra boa.
      A ruim, se por alguma razão a dirigente de ensino ou o diretor do departamento em que estou decidirem que não sou mais de utilidade e cessarem minha designação.
      A boa, se eu fosse convidado a dar aulas em uma escola militar. Rasparia a barba e cortaria o cabelo à escovinha na mesma hora.

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  2. "Ele se cala. Olha para a noite, para as pernas de ébano dela, repletas de varizes serpenteantes dos rios amarelos dos postes da iluminação pública...", estava tudo tão sério e dramático, mas essa frase me fez rir. A vida parece ter alguma graça quando vista pelos olhos de quem não a vive. Seríamos algum tipo de peça, instrumento ou ferramenta para a arte aos olhos alheios?

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  3. Um guerreiro diante do abismo do total niilismo. Só falta de jogar de vez. Ou tentar outra vez.

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  4. aAs coisas são assim mesmo, que melhor aceitar, conformar-se, aguentar o tranco, fazer o quê?

    É isso.

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    1. Sim, é isso, aguentar o tranco. Carregar estoicamente a cruz que lhe foi confiada (Ou escolhida, vá saber...). Um conformismo bem cristão - e sabe que sempre que uso o adjetivo cristão, o faço pejorativamente, né?
      Sim, aguentar o tranco. A questão fundamental talvez seja : para quê?
      Ainda mais dada a minha condição de ateu.

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  5. Deus, que forte! O personagem sou eu? Estou descrita em ipsis litteris. Esses dias me peguei pensando, sentada ao sofa, cotovelos sobre as pernas, cabisbaixa...a vida é isso? Nem sei quanto tempo tenho por aqui. Bateu deprê e alívio.

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