Cicero Decide Morrer

O poeta, escritor, letrista, filósofo, crítico literário e imortal da ABL Antonio Cicero, mais conhecido pela maioria (inclusive por mim) como o "irmão da cantora Marina", de quem foi parceiro em vários de seus sucessos, como Fullgás e Pra Começar, morreu hoje, na Suíça, aos 79 anos.
 
Morreu por escolha própria, enquanto ainda conseguia decidir sobre sua vida, ou sobre sua morte, no caso. Optou pela eutanásia, prática médica permitida na Suíça.
 
Diagnosticado com Alzheimer, Cicero já não conseguia mais escrever bons ensaios de filosofia ou poemas que lhe agradassem. Já não se lembrava de fatos recentes e, fora os amigos mais íntimos, de muitas pessoas com quem convivera. 
Então, enquanto ainda lhe restava algum laivo de consciência, alguma nesga de lucidez, optou pela eutanásia.
 
Entendo perfeitamente. E quererei eu ter essa opção caso me pegue em situação similar.
Uma morte a ser lamentada e sentida por amigos e admiradores (não me encaixo em ambas as categorias).
Uma maneira de morrer a ser festejada. Por todos.
 
Aos amigos, deixou uma carta de despedida.

Queridos amigos,

Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer. Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem. Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.

Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo. Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação. A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa – mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los. Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.

Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!

Antonio Cicero
1945 - 2024

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6 Comentários

  1. No Brasil não é permitida a eutanásia em humanos. E já existe um movimento de conscientizacao sentimental que visa "estimular", "incentivar", "educar" os donos de pets a não mais decidirem pelas vidas de seus estimados pets. Isso quer dizer que, se esse movimento ganhar força, logo farão uma lei onde, em vez de sacrificar o seu totó (que não tem cura está com 15 anos e não consegue mais se situar da realidade), você será obrigado a pagar exames sobre exames, medicamentos sobre medicamentos, internações sobre internações - todos carissimos - para prolongar ao máximo o sofrimento do seu pet ao seu lado, vez que já foi falado que ele não tem cura, mas será lindo permanecer com ele rosnando porque não o reconhece, cagando e vomitando sangue por nada, ou simplesmente ir se atrofiando lentamente. Quando ele finalmente se for, você aproveita e se enterra junto, porque até lá, estará com um dívidas até os fios de cabelos, sem carro, quase sem casa...na geladeira tudo para o pet, água pra vc.

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    1. Certeza. Muito da proibição da eutanásia no Brasil e na quase totalidade do mundo está muito mais relacionada a estender os tratamentos dos doentes e o lucro dos hospitais, farmacêuticas etc do que a lenga-lenga de que a vida é sagrada, que ninguém tem o direito de tirar a própria vida etc.

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    2. Gosto de pessoas inteligentes por isso, você captou direitinho o fio da meada.

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  2. Um gesto de coragem, certamente. Minha mãe teve uma lenta evolução dessa doença durante 11 anos até que o fim chegou, naturalmente. Eu concordo que cada pessoa tenha o direito da escolha em uma situação dessas.

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    1. E o fato dele ser ateu talvez tenha facilitado essa decisão, talvez tenha lhe dado a necessária clareza de sua condição.

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  3. O mínimo que um homem digno pode querer é escolher a hora da sua morte. Totalmente compreensível, lúcido e admirável a escolha do Antônio Cícero. Muito melhor do que ficar fazendo ora extra na terra e dando dor de cabeça pra família e ainda ser lembrado como um doente idiota retardado mental que fez os entes queridos sofrerem junto. Parabéns pela postagem, Azarão. (E achei muito interessante o seu comentário sobre o verdadeiro motivo do sistema ser contra a eutanásia).

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