O Cu Que Escreve (Ou : Que Palhaçada é Essa?)

Posso estar a ser ingênuo – certamente, estou. De uma ingenuidade à qual nem mais tenho direito, posto que conto com quase 60 anos de vida. Mas acredito – mesmo – que todo desenvolvimento, incremento e evolução, sejam individuais ou extensivos a todo um povo ou nação, passem, obrigatoriamente, por doses cavalares de afinco, dedicação, trabalho, estudo e esforço. E, claro, creio também em sua contrapartida, que toda estagnação, atraso e retrocesso sejam o resultado de uma total falta de compromisso com as qualidades e as ações acima citadas.

Não quero crer na sorte ou na falta dela, o azar, como fatores determinantes do êxito de uma pessoa ou uma nação. Porém, vez ou outra, exposto a fatos incontestes, fico sem argumento para negar-lhes a existência, bem como os seus pesos e influências no resultado final.

O Brasil, a exemplo. Somos uma nação azarada. Das mais que há neste desafortunado planeta; se não a mais. Somos conhecidos pelo nosso apego e afeição ao estudo e ao conhecimento, somos notórios mundialmente pelos bilhões, bilhões e mais bilhões gastos anualmente com o fomento e o incentivo à pesquisa e à produção científica.

Pesquisa científica de ponta, de altíssima qualidade e relevância. Ciência aplicada pura. Debruçada sobre e direcionada a encontrar soluções para as principais questões nacionais, para as reais necessidades e urgências da população.

No entanto, não conseguimos deslanchar; no entanto, continuamos empacados. Não obstante os esforços governamentais e a suada labuta de nossos melhores cérebros, seguimos subdesenvolvidos, terceiro-mundistas científicos e tecnológicos.

E por quê? Azar. Só pode ser azar.
Ontem mesmo, recebi a seguinte imagem de um amigo.


“Conversas sobre uma autobriocografia : é possível autobiografar pelo cu?”, de autoria da Dra. Virgínia Maria Barcellos, da UERJ

Autobriocografia. Confesso que achei uma sacada genial, a biografia escrita pelo ou com o brioco, termo que é sinônimo de cu em várias localidades do país. De fato, tem cu por aí com muita história para contar, ô, se tem! Ah, se esse cu falasse...

Além de achar muito criativo o neologismo, achei também, é claro, não ser uma pesquisa nem uma pessoa reais, pensei, num primeiro momento, ser mais uma dessas brincadeiras da internet, dessas sacanagens, um meme bem-humorado, enfim.

Fui dormir e acordei com a autobriocografia na cabeça. Estava com a pulga atrás da orelha. Dividido quanto à questão. Em dúvida. Ao mesmo tempo em que aquilo, claramente, parecia-me uma brincadeira, algo sussurrava-me aos ouvidos que não. Que a pesquisa, sim, existia. E das mais sérias. Tão inédita, tão ousada e corajosa, tão vanguardista e de tal significância que, além de real, só poderia mesmo ter sido conduzida por brasileiros – uma brasileira, no caso.

Então, hoje, manhã quente, seca e enfumaçada de sábado, dei uma fuçada na internet e minhas suspeitas se confirmaram : a pesquisa é verídica. Idem a Dra. Virgínia Maria Barcellos.
Sim, meus caros. A “ciência” é quem nos assegura : sim, é possível escrever a história da sua vida com o cu! E caneta de cu? É rola? Será mesmo possível escrever certo por pregas tortas?
Encontrei até um link para baixar o pdf da “tese", o qual disponibilizarei ao fim da postagem, a quem se interessar possa.

Em seguida, lancei-me a atitude das mais temerárias e das mais raras, também : resolvi (tentar) ler a tese da doutora. Não suporto a linguagem acadêmica. Quando ingressei em minha primeira faculdade, na USP Ribeirão Preto, muitos julgavam que, devido à minha suposta e nunca confirmada inteligência, eu seguiria na vida acadêmica. Pois desde sempre eu nunca tive paciência para a vida acadêmica. Aliás, para nenhum tipo de vida, mas sobremaneira a acadêmica.

Acho enfadonho e aporrinhante, a linguagem acadêmica. A bem do método, do rigor e da padronização, sei que ela se faz necessária, mas não deixa de ser um porre. Respirei fundo e lancei-me à leitura.

E já começou bem : “Quantas Virginias cabem dentro de um fusca? uma enunciação f(rjiccio (a)nal autobiográfica com o universo da palhaçaria”, diz a folha de rosto.
Entenderam? Nem eu.

Mas segui em frente. Até a página trinta e cinco – a tese em si começa na página 14 – nada da escrita pelo cu. A autora discorria apenas sobre a nobre e desprezada arte da palhaçaria. Claro que não li linha a linha. Fui fazendo um tipo de leitura dinâmica, tentando catar palavras-chave para o assunto de interesse, no caso, o vocábulo cu. E nada. Nem um cuzinho pra contar história. Achei até que a tese estivesse com o título e a folha de rosto trocados.

Então, de súbito, na página 36, a autora conta que, em certa feita, estava num bar com uns amigos e passou um sujeito distribuindo um panfleto. Ao ler o panfleto, que daqui a poucas linhas reproduzirei, a ficha lhe caiu. Imediatamente, ela fez uma associação direta entre a arte da palhaçaria e a autobriocografia, a escrita pelo cu.
Associação direta? Valha-me São Carequinha! O que o palhaço tem a ver com o cu?

Eis o panfleto que provocou o genial insight da autora.


Oração ao Poderoso São Cu! Sensacional. Se tem um órgão ao qual orações de proteção e  zelo divino devam ser dirigidas, é o cu! Quem tem cu, tem medo. Essa oração é um achado. Uma pepita de ouro. É a Ave-Maria do Cu! Poderoso São Cu rogai por nós!

Nem mesmo Rogério Skylab, autocoroado o Rei do Cu, seria capaz de produzir uma preciosidade dessas! Caso essa oração venha a lhe cair nas mãos, Skylab, imediatamente, fundará a Igreja do Poderoso São Cu. E se autoconsagrará Papa, o Papa do Cu! Ou seria Papa-Cu?

Ainda procurando saber o que tem o palhaço a ver com o cu, segui lendo e selecionei alguns trechos memoráveis da tese. Primeiro, a definição do que é a autobriocografia.

“Porém, nesse momento, extrapolando os conceitos autobiográficos expostos aqui, sugiro maltratar a teoria e propor uma nova ferramenta: a Auto-Brioco-Grafia. Se todo começo histórico é baixo, ou vil, então faz sentido começar por baixo, tanto pelo local da minha história, a rua, quanto pelo estrato corporal inferior, o “baixo corporal” no sentido bakhtiniano (1993) relatado na narrativa. Desdizer-se de si mesmo exige uma grandeza escatológica, uma estética que celebra o imperfeito, a despossessão, o queer e o macabro.    
Entendo a Autobriocografia como um fluido corporal. Porém, a teorização presente que me permite pensar sobre o meu cu não vê o corpo, o fluido e muito menos a epistemologia da força, energia e fluxo que o corpo produz. A teoria pensa um cu parado, em taxidermia. Só vê um centro que precisa estar limpo e controlado a qualquer custo. Ao limparmos o cu, limpamos sua narrativa. Lembrem-se que até o cu tem fissuras, causadas por momentos intensos ou por um cocô ressecado que resolveu sair causando. E se até o cu tem fissuras, por que não teria a teoria? Em que cu você senta? Tá com o cu na mão? Por que tanto medo do monstro que mora no cu? Aqui, a Auto-Brioco-Biografia será a materialização da fricção entre o palhaço e as teorias do currículo, mediadas pelo jogo.”

Ah, apareceu aí o palhaço. Agora, tá ficando mais claro, certo? Porra nenhuma. É o Samba do Palhaço Doido.

Em seguida, uma necessária distinção dos dois tipos fundamentais de cu : "Através da revisão de literatura e experiência pessoal, estão diante de mim dois cus. O primeiro é o cu erotismo do ânus. Desejado por uns e temido por outros, o fato é que quando cai na boca do povo um sorriso se abre, ou de sonho ou de constrangimento. Esse cu tem temperaturas, texturas, cores e formas. De dentro dele entram e saem possibilidades infinitas. Um denunciador por natureza, uma vez que expurga o que o estômago tentou digerir e guardar para si, mas não conseguiu. O segundo cu que para mim pisca é o cu-lto: o cu acadêmico. Localizado da cintura para baixo, guardando segredos e possibilidades, conectando um intemo com um externo, o pobrezinho, de tão poderoso e latente, precisou passar por uma higienização para chegar à teoria. Foi homogeneizado, higienizado e tantos outros 'ados'."

Mais um, isso lá pela página 50 e tanto, depois de muita citação, de muito blá-blá-blá : " Essa ação tão desejada nos números cômicos, talvez por trazer à cena de maneira minimamente tolerada socialmente a parte do corpo mais temida na sociedade branca e ocidental: o cu."

Outra relação entre o palhaço e o cu, segundo a autora, isso lá pela página oitenta e tanto : "O processo é simples e objetivo: ao não poder falar de sexualidade e partes sexuais perto de criança, rouba-se isso do palhaço também, uma vez que existe um movimento similar de construção do palhaço e da criança. Quando apagamos a parte inferior do corpo, em uma arte que depende basicamente do corpo, o palhaço foi se tornando asséptico e, em parte, apagado e normatizado. Um paradoxo. O pum cheiroso do palhaço que é feito do talco branco e a torta de chantilly gostosa estão distantes das manifestações relatadas durante os Entrudos, quando os negros escravizados jogavam fezes pelas ruas em sinal de protesto. A modernidade inventou 64 um palhaço limpo e asséptico. E isso tudo me leva a pensar sobre como é possível limpar um palhaço e uma criança que dependem do corpo." 

E a coisa seguiu, por mais páginas e páginas tiranas, com a descrição, geografia e análise epistemológica dos mais diversos tipos de palhaços espalhados pelo mundo. Então, já quase na página 100 (a tese conta com cento e oitenta e cinco delas), veio a pá de cal na minha já moribunda paciência : qual o lugar da mulher na palhaçaria, a necessária discussão dos gêneros na palhaçaria.
E o cu, que é bom, cadê? E o cu, que eu tanto gosto, onde fora parar? Sumira. 
Capitulei, é claro.

Volto a recolocar a questão original : com tanto investimento em boa pesquisa, com tanto gasto legítimo de dinheiro público (sim, meus caros, esta merda é patrocinada por você), com cérebros de tais quilates, como o da doutora, trabalhando em prol do benefício da nação, como podemos ainda ser essa carroça, esse carro de bois científico e tecnológico?

Azar. Odeio admitir. Mas só pode ser azar.
Colocaram o nome do Brasil na boca do sapo. No cu da jia, nesse caso.

Falei que ia deixar o link pra esta maravilha, mas desisti, vou porra nenhuma.
E pra terminar esta joça, não um beijo do gordo, como dizia Jô Soares, mas um beijo do cu.


Pããããããããta que o pariu!!!!!!

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6 Comentários

  1. E aí, Marreta, beleza?

    Ainda bem que li esta tua postagem, não poderia continuar o mês de setembro sem conhecer tamanha obra de pesquisa científica! Fiquei abismado, com o cu caído mesmo de tanta emoção de ver como nossas universidades parem (pelo cu) tão grandes pesquisadores. E o grande azar do Brasil foi ter perdido um acadêmico como você, o que esse meio mais precisa é de marretada.

    abraços.

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  2. Rapaz, não culpo a péssima impressão que a sociedade tem da academia. Cheguei a dizer isso numa reunião, quando um colega se negou a dar aulas online durante a pandemia, quando tantos morriam de covid e padeciam com o desemprego. Simplesmente porque o sistema na época o permitia fazê-lo. Ele decidiu ficar em casa curtindo sua Netflix de boa, enquanto os outros idiotas ficaram preparando aulas online e gravando videoaulas. Incluindo este que vos fala.

    Você já deve ter visto diversas pérolas da ciência, como essas:

    https://www.amazon.com.br/Cai-boca-meu-c3t-empoderamento/dp/659940006X

    https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/em-universidade-federal-doutorado-sobre-orgias-gays-temparticipacao-especial-de-autor-3eppke8i3rfdghp29hacdbj6l/

    A alegação dos orientadores é que tais trabalhos foram aprovados por bancas examinadoras compostas por doutores. Mas eu lhe garanto: é só montar uma "banca amiga" e tudo se aprova.

    Ano passado, ainda me deparei com esse vídeo. Não posso negar seu teor, sobretudo porque esse tipo de coisa é bem corriqueira nas universidades, sobretudo nos cursos de ciências humanas.

    https://www.youtube.com/watch?v=ORyxQTZd5f0

    Detalhe: na UFSC, a poucos passos dali, fica um dos maiores laboratórios da minha área, que desenvolve pesquisa científica e tecnológica de ponta, projetos em parceria com setor público e privado, responsável pela formação de recursos humanos altamente qualificados. Mas os youtubers foram lá mostrar? Claro que não.

    Enfim, o que vamos esperar do país com QI médio 83?

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    1. Eu tenho alguns amigos e um primo que são do meio acadêmico e, de fato, sei que muita pesquisa boa e séria é desenvolvida nas áreas de exatas e biológicas.
      O que desgraça tudo são as tais humanas, sobretudo essas militâncias de merda.
      Em muitos lugares, se faz mais política que ciência. Fora, é claro, os favorecimentos,os apadrinhamento etc.
      Vou conferir os links.
      Abraço

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  3. Rapaz, feliz por voltar a ler um texto irônico escrito por você! Mas o que eu quero é lhe dizer (isto não é letra do Chico) é que estamos perdendo uma excelente oportunidade de conquistar um dos Prêmios Ignobel destinados às pesquisas mais bizarras ou ridículas que malucos resolvem fazer. A "banca examinadora" precisa conhecer essa pesquisa! E aí poderemos comemorar tomando uma Caracu, fazendo sudoku ou escrevendo um Haiku.

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  4. E isso ainda rendeu uma tese? Inacreditável. Só no Brasil mesmo.

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