Pequeno Conto Noturno (107)

02h19.
Sem saber se ainda por prazer, por gosto, ou se já (e há muito tempo) por inerraigável hábito, por coagulada inércia, ou, além disso, e sem grandes mistérios ou dilemas existenciais, meramente por não ter pra onde correr, Rubens entorna a cerveja morna de seu canecão de superfície orvalhada e mira as luzes da cidade, ao longe, ao perto.
De vapor de sódio, de mercúrio, de argônio. Quentes, frias, de filamento, fluorescentes, halógenas, de LED.

As luzes das luminárias e das arandelas das casas térreas - vigias noturnos de seus alpendres, jardins, janelas e soleiras. As dos últimos apartamentos ainda resistentes ao sono - pagãos que não receberam a unção e o batismo de Morpheus. As dos letreiros das farmácias 24 horas e dos postos de combustíveis. As dos automóveis, as dos semáforos, as das praças tomadas por vagabundos e crackeiros, as dos postes de iluminação pública.

Miríades de esquálidos simulacros de mortiças estrelas, miríades de farsantes pequenos sóis. Paridas, tais luzes, das entranhas do pavor primal e atávico do ser humano frente ao escuro, à noite. Versão moderna, substitutas incompetentes, segundas em comando das crepitantes e fulgurantes fogueiras paleolíticas erigidas às portas das cavernas.

Não fossem já sobeja poluição eletromagnética, pensa Rubens, juntam-se a elas, nesta época do ano, as hediondas e piegas luzinhas de Natal.
Brancas, amarelas, multicores. Unidas em série. Irmanadas xifopagamente em extensas e intermináveis fieiras, penduradas em quilométricos varais. Parreiras de pequenos lumes a crescer, a trepar, a alastrar-se, a fixar-se com suas gavinhas de fios de cobre nas fachadas e nos portões de grades em forma de lança das residências. A enrolar-se, cipó-chumbo parasita, nos troncos e galhos das vetustas árvores das avenida principais da cidade e a atrapalhar o sono dos pardais e das andorinhas. E, sobretudo, a tomar, feito hera espinhenta e venenosa, as telas de proteção das sacadas dos prédios de apartamentos adjacentes ao de Rubens - as que mais chegam às suas vistas.
De brilho fixo, algumas. Intermitentes, tremelicantes e estroboscópicas, outras. A simular corrediço movimento de ida e volta, outras ainda. A escorrer verticalmente feito uma lágrima, que se chora sem se dar conta, outras poucas.

02h33.
Rubens começa nova, e de mais adequada temperatura,, caneca de cerveja. Do toca-CD : "...ah, mas que sujeito chato sou eu, que não acha engraçado, macaco, praia, carro, jornal, tobogã, eu acho tudo isso um saco...".
À mais que correta e precisa lista de Raul, Rubens acresceria, tranquilamente, as luzinhas de Natal. A fazer coro com as outras luzes, as não sazonais, a ampliar não a visibilidade, sim a neblina e a nebulosidade da paisagem noturna, as luzinhas de Natal proíbem que Rubens veja as estrelas cadentes, as naves-mãe das Plêiades, o baile dos sacis e dos pirilampos, o neon dos quasares e das anãs brancas, o striptease da túrgida Lua Cheia, que escute o cantarolar carnavalesco da Estrela D'alva.

Não permitem nem que ele vislumbre os fogos-fátuos verde-bário dos fantasmas de seu passado, de seus mortos e de suas várias mortes. Fogos-fátuos que são apelos, súplicas de S.O.S. telegrafadas no metano e na fosfina de sua alma defunta e decomposta.

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