A Espada e as Flores de Jorge

Gosto de plantas. A contrapartida, amiúde, não se faz em verdade. Pudera, se eu fosse uma planta, também não simpatizaria muito comigo, não iria muito com as minhas fuças - sendo gente (aliás, humano, Homo sapiens, gente é outra coisa, totalmente diversa), sendo eu, já não simpatizo.
 
Todo ser vivo, concluo das minhas quase seis décadas de vida (aliás, de existência, que vida é outra coisa, totalmente diversa), gosta de quem o mima, o paparica, o trata feito a um fidalgo. Eu não sou de bajular minhas plantas, de enchê-las de agrados. Rego-as, tão-somente. Não converso com elas, não ponho música clássica para ouvirem. Mesmo adubá-las, nem me lembro de quando foi a última vez.
 
Às vezes, estou no mercado, vejo lá uns adubos químicos e penso em comprar, mas só de pensar em diluir a mistura, colocar num regador ou numa garrafa pet e passar de vaso em vaso, me dá uma preguiça... Às vezes, estou fazendo comida e sobram lá cascas de cebola, chuchu, casca de ovo, borra de café etc e até penso em triturá-las e liquefazê-las no liquidificador, deixar curtir e dar de comer na boquinha das plantas, mas dá uma preguiça...
 
Assim, é lógico que elas não sejam minhas maiores fãs, é óbvio que não vicejem em clorofilados sorrisos e aplausos para mim, que não tornem minha sacada em uma hileia, mas até que resistem, crescem e se desenvolvem, em ritmo de funcionário público.
 
Por um bom tempo, consegui manter uma estante de madeira - 1,20 m x 0,70 m, cinco prateleiras -, aparafusada na parede da sacada onde incide o sol da tarde, com um bom e variado acervo de suculentas e cactos. Gosto dessas plantas. São secas, ásperas e desesperançadas. Feito eu. Não têm luxos, contentam-se com o irrisório necessário, não requerem cuidados especiais. Feito eu. Porém, a desgraça de um fungo branco, esponjoso, parecido com marshmallow, as infectou e dizimou. Fungo que pode ser visto em vários pontos da cidade, nas árvores do paisagismo urbano, gosmento e agarrados às folhas, fungo que veio aportar na região há quase cinquenta anos, com a implementação da desgraça da cana-de-açúcar.
 
Oitenta, noventa por cento da minha coleção morreram. Restam hoje poucos exemplares, que resistiram ao fungo, que não morreram, mas estancaram em seu desenvolvimento. Nem morrem nem crescem. Ficaram meio que em animação suspensa. 
 
Além da estante na parede face sol, tenho uma armação de madeira, parecida com estrado de colchão, afixada a uma outra parede, numa quina da sacada, onde o sol não bate direto. Nela, mantenho ainda uma boa quantidade de folhagens : comigos-ninguém-pode, singônios, lambaris-roxos, jiboias, minidracenas, espadas-de-são-jorge, ráfias etc. 
Estas não foram infectadas pelos fungos. Ou são imunes a eles, ou não os apetecem.
 
E foi uma dessas plantas, uma espada-de-são-jorge, que me ofereceu um espetáculo nesta semana, nunca dantes presenciado por mim : ofertou-me uma bela inflorescência, do tipo racemo, de mimosas flores brancas.  
 

Eu nem sabia que a espada-de-são-jorge florescia. Minha mãe sempre as teve em casa, e nunca vi nenhuma soltar flor. Minha sogra as possui às dezenas, e também nunca vi uma única florzinha em alguma delas nesses mais de vinte anos que frequento sua casa.
 
Não tive dúvidas. Recorri imediatamente à minha AAJ, Assesora de Assuntos de Jardinagem, a Dª Isabel, professora já aposentada com quem tive o privilégio de conviver. Dª Isabel tem um grande quintal em sua casa, coalhado de plantas das mais diversas espécies. Se alguém soubesse da flor de São Jorge, seria ela. 
 
Dª Isabel é dessas extrararíssimas pessoas que a gente olha e não sabe o que ela está fazendo nesse planeta. Se eu acreditasse na existência de anjos e que, dentre eles, volta e meia, alguns desistem das asas e passam a circular entre nós, Dª Isabel seria um deles.
 
Mandei uma mensagem com a foto acima, perguntando se ela sabia que a espada-de-são-jorge dava flor, se já tinha visto alguma vez. Respondeu que sabia, sim, e que já tinha visto, mas que fazia muito pouco tempo, no início deste ano, quando uma das suas também floriu. Antes disso, nunca em sua vida.
 
Contou-me que, assim que as flores murcharem e caírem, surgirão pequeninos frutos vermelhos na haste da inflorescência, que ficará mais bonita ainda.
 
Não sei se a espada-de-são-jorge (e também não estou com o menor saco para pesquisar) tem flores hermafroditas, que se autofecundam, ou se dependem de agentes polinizadores. Sendo o segundo caso, não verei os tais frutinhos. Moro no 12º andar, aqui não chegam insetos do "bem", abelhas e borboletas, nem mesmo pequenas aves nectarívoras, feito o beija-flor; apenas baratas cascudas, que sobem pelos ralos, e formigas, daquelas miudinhas. Esperemos.  
 
Disse ainda que plantas assim, de raras floradas, só desabrocham em ambientes nos quais se sentem confortáveis, seguras, em que são muito bem cuidadas, que eu estava de parabéns.
Dª Isabel é assim, sempre vendo o melhor das pessoas, mesmo quando, no meu caso, esse melhor não exista. 
 
Na verdade, as florações costumam se dar em situações inversas à descrita por Dª Isabel. Elas florescem mais intensamente em situações de estresse, seja por temperaturas extremas, tanto para baixo quanto para cima, seja por escassez de água no solo ou de nutrientes.
Quando em situações de risco, quando pensam que vão morrer, abrem-se em flores, como maneira de espalharem seus genes e suas sementes por aí, de não deixarem extinguir a espécie.
 
Mas acham mesmo que eu diria isso a ela, acham mesmo que eu iria desiludir um anjo?

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