Um Dia na Vida (16)

Hoje, logo cedo, ao atravessar uma das três praças por que passo a caminho da lida, fui cumprimentado euforicamente por um desses malucos autóctones destes logradouros públicos.
 
- Bom dia, senhor - ele disse. - Deus vai fazer seu dia ser muito bom.

Normalmente, não sou de responder a esses otimismos. Bom dia às 6h da manhã? Esperemos, antes, o  dia chegar ao fim, e conversamos sobre.
No entanto, dada a efusividade de sua saudação, respondi, um bom dia pra você, também.

O que trouxe à tona uma recordação de mais de 20 anos, que eu nem me lembrava de que dormia no fundo lamacento e lodoso da minha memória. Bem que se diz que nosso cérebro registra absolutamente todos os estímulos que passam por nossos sentidos, mesmo que, na pressa e no corre-corre diário, não os percebamos conscientemente. Uma imagem captada por nossa visão periférica, um cheiro aspirado ao se passar em frente a um restaurante, lanchonete ou padaria, uma música saída de uma loja ou de um automóvel que passa.

Tudo, absolutamente tudo, desde o nosso nascimento, e até, garantem alguns, já a partir de nossa vida intrauterina, está lá, gravado nas nossas circunvoluções. Só não temos, na grande maioria das vezes, o acesso voluntário a esses nossos arquivos mortos.
Podendo eles serem exumados a qualquer momento, quando o cérebro, por conta própria, relaciona a memória hibernante com um estímulo recente. Como aconteceu hoje, com o bom dia do maluco.
 
Entre os anos de 2000 e 2003, residi no município de Mococa. Eu era um total estranho, um completo forasteiro nos meus primeiros tempos por lá - e continuei a sê-lo pelos três anos subsequentes. Nos primeiros dias, ao andar pelas ruas para ir me familiarizando com a cidade, recebia muitos bons dias e boas tardes de vários de seus nativos. O que nunca foi costume na suposta e pretensa metrópole de Ribeirão Preto.
 
Os mocoquenses me saudavam alegres e simpáticos. Creditei tais modos ao fato de ser uma cidade mais interiorana, uma cidade pequena, e à sua localização geográfica, divisa com outras pequenas cidades de Minas Gerais, Estado afamado por seus hábitos e costumes mais tradicionais e por sua hospitalidade.
 
Comentei, então, durante um intervalo, o fato com uma professora nascida e criada na cidade. Ela riu e me perguntou como essas pessoas tão educadas estavam vestidas. Se alguém chegar para mim agora, sem aviso prévio, mandar que eu feche os olhos e diga como estou vestido, há uns 90% de chance de eu errar. Quanto mais me lembrar de como os outros estão ou estavam trajados.
 
Para ajudar, ela falou : - eles não estavam vestidos assim, assim e assim? A memória aflorou. Ela fora precisa na descrição da indumentária dos gentis mocoquenses : sapatos ou tênis pretos, calças cinza, camisas cáqui. Disse a ela que sim. Não tinha me parecido estranho na hora, pois não reparo nas roupas dos outros, mas que agora aquilo era meio intrigante.
 
Ela riu mais ainda. "São os internos do hospital psiquiátrico. Duas ou três vezes por semana, os loucos mais mansos, menos perigosos, são liberados para passearem pela cidade, sob supervisão, claro".
 
Não eram, portanto, mocoquenses educados : eram loucos, malucos de pedra. Iguais ao que me cumprimentou hoje na praça.
 
Será que, hoje em dia, só sendo maluco para se ser educado com estranhos?
Só sendo louco para crer que teremos um bom dia e, pior, que esse dia alvissareiro nos será ofertado por deus?
Ou será a loucura a Suprema Deidade?
 

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