O fato é absoluto; a verdade, relativa.
Tenho cá para mim que a Verdade - o que cada um considera e chama de verdade - seja, na verdade, longe de serem mentiras, as suas verdades. Que a verdade seja maneira pela qual cada um percebe e interpreta um fato, um mesmo fato. Que a verdade seja o modo com que um fato impacte, impressione e influencie as vivências e as vidas de cada qual.
Um mesmo fato pode se converter em uma verdade risonha para uns e numa tristonha para outros.
A exemplo prático e, infelizmente, atualíssimo : o fato : Lula está a exercer seu terceiro mandato; ou o quinto, a considerarmos os dois de Dilma Rousseff, o seu avatar de saias e do grelo duro. Mas aí já estarei a entrar no campo da verdade, da minha verdade, da minha percepção.
Assim sendo, e não querendo colocar o carroça na frente dos jumentos, atentemo-nos ao fato : Lula está a exercer o seu terceiro mandato presidencial. Ponto.
Se eu for perguntado qual a verdade acerca desse fato, direi que estamos numa conjuntura econômica de merda, como só antes da criação do Plano Real me lembro de ter vivido : taxas e impostos enfiados diariamente em nossos cus, inflação galopante. Mais : bandidos e corruptos descondenados nos principais cargos de poder do país, um Judiciário mafioso e aparelhado, claras ligações com o crime organizado, planos e declaradas intenções e atos no sentido de instalar uma ditadura Chavista por aqui.
Se a mesma pergunta for feita ao Chico Buarque, aos "artistas" e "jornalistas" da Globo, às "cantoras" de axé e aos demais e diversos e de um sem-número de ungidos pela Lei Rouanet, pela isenção de impostos, pelo perdão governamental de divídas etc, esses declararão que a verdade é que nunca viram melhor governo, que nunca a economia esteve num crescente tão viril, que temos uma das Justiças mais imparciais do mundo, e que nunca a democracia respirou tão aliviada.
Mesma verdade seria obtida das ONGs e dos beneficiários das "n" Bolsas Vagabundo : nunca estivemos tão bem, tão tranquilos, nunca comemos tanto sem precisarmos tirar nossas bundas do sofá.
Um fato. Duas verdades. Fato é o que aconteceu; verdade são as consequências e as implicações sob as quais cada um vai passar a viver a partir dele.
As duas verdades são verdadeiras. E nenhum dos lados é capaz de demover o outro da sua.
Preâmbulo estabelecido, vamos ao mote da postagem : o Oscar 2025.
Torci para o filme "Ainda Estou Aqui" e/ou para a atriz Fernanda Torres? Não e não.
Não torço por nada nem por ninguém; nem por mim mesmo, provavelmente. Torcer, parece-me um tipo de prece ateia.
Não obstante, gostaria que a Fernanda Torres tivesse abiscoitado a fálica estatueta - ou vão me dizer que nunca perceberam que o tio Oscar parece um vibrador ?
Gosto da Fernanda Torres, considero-a uma excelente atriz, melhor mesmo que a sua mãe, a Fernandona. Causou-me muito boa impressão desde a primeira vez de que me lembro de tê-la visto, em A Marvada Carne (eu deveria contar com meus 18, 19 anos), no extinto Cine Centenário, que por muitas décadas abrilhantou a esquina da rua Barão do Amazonas no velho Centro e no qual, em mais tenra idade ainda, eu era levado por meu pai às suas matinês dominicais para assistir a Tom & Jerry, "agora" em technicolor 35 mm.
Além disso - talento paralelo que talvez não seja do conhecimento da maioria das pessoas -, Fernanda Torres é escritora. Uma puta duma escritora! Escreve bem pra caralho! Li duas de suas obras. São melhor escritas, acreditem-me, que os livros que já li, por exemplo, do Jô Soares e do Chico Buarque.
Não torci por ela, mas gostaria dela ter vencido. Gosto de ver o genuíno talento ser reconhecido e recompensado - duas coisas raras de ser ver atualmente : um talento genuíno e uma recompensa a ele.
Já pelo filme, não só não torci, como também não gostaria, como não gostei, que ele vencesse, como venceu. E por quê?
Porque o filme narra uma verdade pessoal e particular da família do deputado Rubens Paiva sob a vigência do governo militar, que se estendeu de 1964 a 1984, 85.
Uma verdade trágica e terrível, um drama familiar a ser lamentado e respeitado. A verdade da família de um político preso, certamente torturado, morto e feito em desaparecido pelo governo ao qual se opunha.
E qual o problema em um filme que conte essa verdade? Nenhum. Em tese, nenhum.
Porém, se o filme vencesse, como venceu, ajudaria a cristalizar, como agora o fará, uma verdade particular como sendo A verdade de toda uma nação; uma verdade pessoal como a História oficial de todos nós.
Não é a minha verdade, por exemplo. Está longe de ser a minha percepção e a minha vivência sob o mesmo regime que a família Paiva. Nem minha nem de todas as pessoas com quem tive algum tipo de contato (mais próximos ou mais distantes, opcionais ou obrigatórios) durante esse período. E olha que entre meu nascimento, em 1967, e o fim do governo militar, em 1985, eu residi em três cidades, inclusive em Porto Velho (RO), portanto, tive contato com realidades bem diversas.
E nunca, nunca tive notícia de parentes, de parentes de parentes, de vizinhos, de parentes de vizinhos, de amigos, de parentes de amigos, nem mesmo de professores que tenham tido algum problema com o regime de então. Ninguém que tenha ido parar nos chamados "porões da ditadura", que eu chamo de "spa pra vagabundo".
Em 2014, A Comissão da (meia) Verdade do governo Dilma Rousseff, em relatório final, reconheceu, entre mortos e desaparecidos, um total de 434 vítimas do regime militar. Quatrocentas vítimas dentro de um contigente populacional com cerca de 90 milhões de brasileiros. Não me parece que havia tantos descontentes assim com o regime.
Meia verdade porque assassinados, torturados e desaparecidos também existiram no lado dos militares : 126, segundo os Clubes Naval, Militar e de Aeronáutica. Vitimados por militantes e terroristas da esquerda, hábeis torturadores, sequestradores e assassinos. Alguns destes, inclusive - essas desgraças são longevos, são duros de morrer -, circulam até hoje pelos corredores do poder sob o manto de democratas.
Mas este fato não é transformado em verdade. Essas pobres almas penadas da História não ganham filmes, são propositalmente esquecidas, olvidadas dos registros oficiais, os dramas de suas famílias são desprezados. Suas verdades não apenas não se encaixam nas atuais narrativas, como também, se contadas, desmentiriam-nas, desmascarariam-nas.
O fato : 20 anos de regime militar.
A verdade da família Paiva e de mais quatro centenas de famílias : chefes de família ou filhos em conflito com o governo vigente e liquidados por este. Verdade verdadeira. Terrível. Deles.
A verdade da minha família e da imensa maioria das famílias de então : um pai que trabalhava de sol a sol para prover o sustento da casa, ruas seguras por onde andávamos despreocupados e sem causar preocupação às nossas mães, escolas públicas de qualidade, nas quais havia respeito aos professores e diretores, obediência à hierarquia, valorização do estudo, dedicação e afinco a ele, época em que quem trabalhava, progredia, em que o certo era obrigação e o errado era punido e desqualificado, época em que podíamos dormir de janelas abertas, em que o bandido tinha medo da polícia. Percorríamos, sozinhos, ainda bem crianças, os pouco mais de 2 km de nossa casa até a escola : nunca fomos abordados ou molestados por nenhum tipo de vagabundo.
Minhas recordações - minha verdade, portanto - de minha infância e adolescência são as melhores possíveis. Nunca me senti oprimido, ameaçado ou correndo algum risco.
Fui abordado uma única vez pela polícia. Estava eu com 17 anos, morava na cidade industrial de São José dos Campos, fazia cursinho à noite e atravessava a pé boa parte da cidade.
Naquele dia, na volta para casa, já passada em pouco as 23 horas, policiais de uma viatura estacionada em uma praça escura da cidade, abordaram-me.
Pediram-me um documento, que eu abrisse e mostrasse o interior do meu estojo de canetas, que eu levantasse a camisa, que tirasse todo o conteúdo de meus bolsos e perguntaram o que eu fazia àquela hora por ali.
Sem nenhuma truculência - talvez por eu não ter reagido à abordagem de forma desaforada. Sem nenhum abuso de autoridade - talvez por eu não ter reagido de forma desrespeitosa ao exercício de suas autoridades.
Depois disso, nunca mais me abordaram. Pelo contrário, trajeto diário que me eram aquela rua e aquela praça, por muitas vezes ainda cruzei com eles, que apenas me olhavam e acenavam com a cabeça em cumprimento tácito. Cumprimento que eu sempre devolvia. Antes que ameaçado pelo "aparelho opressor" do Estado, sentia-me mais seguro com eles por ali.
Minha verdade sobre o tempo do regime militar é bem diferente da verdade da família Paiva e das famílias que perderam entes queridos para as fileiras da esquerda; destoante, até, mas tão verdadeira quanto.
Tão merecedora do mesmo respeito e credibilidade. E, como disse, é a verdade da imensa maioria das famílias do país.
Será que eu afirmar isto, que minha verdade é a mesma que a da maioria (o que não torna mentira a da minoria) também não é parte da minha verdade, da minha percepção?
A algum discordante que tenha a curiosidade e a pachorra para matá-la, proponho o seguinte : ande pelas ruas (não por universidades e repartições públicas de alto escalão), pelos mercados, pelas padarias, pelos ponto de ônibus e vá identificando pessoas que estejam próximas aos 60 anos para mais. Em seguida, pergunte-lhes sobre as lembranças que guardam do período do regime militar, pergunte-lhes sobre as suas verdades.
Pergunte, sei lá, para mil pessoas que efetivamente viveram nessa época. Nem precisará ser a maioria deles, se 100 dos 1.000 perguntados lhe revelarem uma verdade mais parecida à da família Paiva do que à minha, retiro esse texto do ar e escrevo uma retratação.
Um fato. Duas verdades. Legítimas, as duas. Merecedoras de respeito, as duas. Mas nenhuma de figurar nos livros de história como a única, como a oficial. Ou melhor : que as duas figurem, então, que as duas sejam contadas - a mostrar que hoje eu estou feito o Lula, moderado e conciliador. Quase jotabélico.
Por isso, não gostei do filme ter vencido o Oscar. Contribuirá para a consolidação de uma única verdade. E para o esquecimento da outra, com o descaso para com outros dramas pessoais.
Por fim, caso ainda seja necessário, se não for, tomem como um bônus, um último exemplo de distinção do que é fato e do que é verdade.
Oscar 2025.
O fato : Walter Salles, UM brasileiro (UM) extremamente talentoso, hábil, capaz e competente, adaptou para o cinema um livro - que, a julgar pelo que li de seu autor até hoje, no máximo deve ser sofrível -, escalou um elenco de excelentes atores, empregou pessoal técnico também de altíssima qualidade, dirigiu a produção e ganhou o Oscar. Walter Salles, UM brasileiro.
A verdade : o Brasil ganhou o Oscar! A Taça do Cinema é nossa, com brasileiro não há quem possa! Somos o País do Futebol, a Pátria de câmeras nas mãos.
Sacaram a diferença?
Juntando-se, agora, às "nossas" cinco conquistas de Copas do Mundo de Futebol, a estatueta do Oscar vem ainda mais a abrilhantar a nossa nada nobre galeria de gozadas com o pau do outro.
2 Comentários
Aproveitando que meu jotabelismo tenha sido citado, vou contar algumas histórias e comentar seu excelente e sincero texto. Primeiro a história. Há dois dias tomei conhecimento de um diálogo entre duas senhoras idosas, em que uma delas, irritada com a excessiva badalação do filme, disse não ter havido tortura no Brasil, que isso não tinha acontecido. A amiga, puta da vida, reagiu asperamente:
ResponderExcluir- Fulana, como você pode mentir assim? Você deve se lembrar de que todos os dias nós duas passávamos ao lado do DOPS e muitas vezes ouvimos os gritos de presos sendo torturados! A quem você quer enganar?
E a amiga apenas abaixou a cabeça em silêncio.
Outras lembranças: nasci em 1950, o que significa que estava na adolescência quando aconteceu o golpe militar (que minha família ultra católica apoiou, diga-se). Mesmo assim, apesar de favoráveis ao pé na bunda do Jango, ninguém ficou vacilando. Lembro-me nitidamente de meu pai nos dizendo para nunca falarmos com estranhos nem para comentar nada do momento político/policial em que vivíamos. A entrada principal do Dops ficava na principal avenida de BH. Quando, por qualquer motivo, tinha de passar perto daquele lugar sinistro de tantas histórias macabras já ouvidas, eu preferia atravessar a avenida e passar do outro lado, pois cagava de medo de alguém me abordar.
Em resumo, se houve mais de 400 mortes, as vítimas de tortura foram muito, muito mais numerosas. E, acredite, mesmo andando “em segurança” pelas ruas, eu não me sentia seguro, pois tinha mais medo da polícia que de eventuais bandidos. Esta é a minha verdade sobre os fatos daquela época sinistra.
Quanto ao filme, tenho a mesma opinião que você. Não foi o país que ganhou o Oscar, foi o bilionário (por acaso) diretor Walter Salles e a excelente equipe que reuniu para a produção do filme, a começar pelas Fernandas, talentosíssimas atrizes, e pelo não menos talentoso ator Selton Mello. Fico de saco cheio com esse ufanismo patriótico em torno de conquistas apenas individuais. Aliás, fico de saco cheio com qualquer tipo de ufanismo. Não foi o Brasil o vencedor do Oscar, foi o Walter Salles. Isso vale também para atletas de esportes individuais que ganham medalhas nas Olimpíadas. O mérito sempre será individual. Querem comemorar uma conquista coletiva? Financiem cientistas e pesquisas de ponta que mereçam um Nobel.
E se não quiser publicar mais este comentário, fique à vontade, pois acreditar em “planos e declaradas intenções e atos no sentido de instalar uma ditadura Chavista por aqui”, embora seja a sua percepção da “verdade”, para mim é apenas delírio.
Delírio? Esperemos pra ver.
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