Pequeno Conto Noturno (102)

02:47 h.
Uma madrugada de cada vez...
Rubens repete internamente. Numa paródia meio irônica, meio canalha e carregada de muita melancolia do lema - quase um mantra - dos AA, os Alcoólicos Anônimos, "um dia de cada vez".

Não é do álcool, contudo, que Rubens está limpo há 13, 14 anos. É de Yrina.
Quase década e meia sem único gole, sem única dose de Yrina. Quase década e meia sóbrio de Yrina. Quase década e meia e não houve uma só madrugada em que Rubens não tenha desejado se embriagar de Yrina, acordar com uma puta ressaca de Yrina. Nem uma só madrugada sem sentir - feito a dor da síndrome do membro fantasma, que atormenta o amputado - o alegre torpor que Yrina lhe causava, o gosto de Yrina a lhe descer, em redenção, em longas talagadas goela abaixo.

Alcoólicos em recuperação contam relatos parecidos da presença ainda constante do álcool em suas vidas, em seus dia-a-dias, mesmo que há anos sem tocarem num copo.

Volta e meia, pela teia cibernética que a todos nos conecta e nos aprisiona, pela nuvem de zilhabytes que troveja e chove sobre nós dilúvios de informações tóxicas e idiotizantes, através desses pombos-correio e sinais de fumaça virtuais, chega algum recado de Yrina. A convidar Rubens, ora singela, ora safada, para uma caminhada, para uma cerveja, para um "simples" café.

Para Rubens, no entanto, não há nada de "simples" num café com Yrina; para ela, acredita até que sim.
Da mesma forma que o temerário primeiro gole para o alcoólico (sabida e inevitavelmente o primeiro de muitos, de inúmeros), um café com Yrina não se restringiria apenas a um café. Seria, como antes fora, o primeiro de uma série. Rubens voltaria a querer Yrina hoje, amanhã, depois... por todos os dias de todas as hebdômanas hostil do gregoriano calendário. Quereria, mesmo, que todos os anos fossem bissextos.

Ao alcoólatra, recomenda-se não se arriscar nem com uma "simples" cerveja sem álcool, pois ela poderia servir como uma espécie de gatilho, enviar ao cérebro uma mensagem de que seu receptáculo resolvera voltar a lhe dar o que tanto ele quer, e desamarrar e desamordaçar vontades enclausuradas. Para Rubens é ainda mais complicado : não existe Yrina sem álcool.
Rubens é um adicto em Yrina.

03:08 h
Rubens acaba com mais um latão. Sabe que hoje precisará de muitos outros ainda.
Para Rubens, o álcool não é um vício, é um paliativo para o seu vício em Yrina, o analgésico opioide para a dor fantasma no membro amputado. O Vicodin do Dr. House.

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