À noite
(noite para a galinha presbiópica e covarde que hoje sou,
Quando vou,
Quando me programo,
Quando me forço
A me deitar
Não é por necessidade
(nas as sinto, as necessidades),
Não é por vontade
(há tempos emigraram de mim, as vontades).
É porque sei
(porque não me há outra escolha)
Que logo terei
De novo
Que me levantar.
À noite
(que é a do Sol funcionário público batendo o ponto e se pondo,
não a da Lua Cheia fazendo para mim a dança do ventre),
Quando,
Com a fé de um herege,
Digo aos meus
Que vou dormir,
Não é por estar com sono
(uma vez que meu dia é todo catalepsia)
Nem pela esperança de bom descanso e bons sonhos.
É porque logo,
Sabendo da fatalidade
De uma realidade imbatível,
Terei
De novo
Que acordar.
À noite,
Quando tento fazer
O meu logout da vida,
Pois sei que a senha
Para minha existência
Logo me será exigida de novo,
Introduzo abafadores de espuma
Em meus salões,
Auditórios e pavilhões auditivos.
Para que nem mesmo o tique-taque do relógio,
Nem mesmo os passos acolchoados das gatas,
Nem sequer o ligar e desligar da geladeira
Me religuem.
Ajusto uma venda
Uma máscara negra
(que não é a do "quanto riso, oh, quanta alegria...")
Sobre os olhos.
Para que nem a luz indireta do banheiro,
Eventualmente usado pelo filho ou esposa na madrugada
Me acorde.
Encaixo
Um molde de silicone
Em minha arcada dentária superior.
Para proteger-me
Dos teus sortilégios
Das tuas bruxarias
Do bruxismo.
Tomo
10 mg de escitalopram.
E consigo
Desexistir por algumas horas.
Uma desexistência sem pesadelos de voltas,
De reexistências.
Porém, inevitável :
Reexisto,
Religo,
Desperto,
Ergo-me.
E bem.
Sem pânico ou angústia
Sem enforcamento no peito.
Reinicio meu sistema,
No entanto,
Com o interior rarefeito,
Feito uma bolha de sabão,
Uma casca,
Um exoesqueleto-fantasma
De uma cigarra.
Tomo meu café da manhã.
Como alguém
Que fez um pacto com o demônio,
Não recebeu nada em troca,
E teve sua alma confiscada
Antes mesmo de morrer.
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