Pequeno Conto Noturno (73)

- De quem são estes desenhos, Rubens, estas histórias em quadrinhos? - pergunta Manoela, sentada no chão do pequeno quarto do apartamento destinado à "bagunça" de Rubens (livros, LPs, uma vitrola, antigas coleções de chaveiros, tampinhas de garrafa e latas de cerveja, umas vidrarias de laboratório surrupiadas nos tempos do curso de química, suas sandálias de Mercúrio, um velho ventilador etc), sentada de pernas cruzadas, só de calcinhas e a vasculhar o conteúdo de três caixas de papelão, destas descartadas pelos supermercados, uma de água sanitária, uma de uma marca de bolacha de água e sal e uma de amaciante.
Do banheiro, Rubens ouve a pergunta de Manoela. Está terminando de se enxugar, secando o pau e o saco com a toalha, aspirando fundo e demoradamente, feito um somellier a inalar os eflúvios dionisíacos de um bom vinho, o resto da atmosfera de vapor enfeitada com a pantanosa e musguenta paleta de cheiros extraída por ele dos intestinos de Manoela, que, em agonia e êxtase, o recebeu inteiro em seus subterrâneos.
Lembra, então, que deixara as caixas no chão do cômodo, que não as recolocara de volta ao maleiro do guarda-roupas ao fim da limpeza e do reforço com naftalina. Rubens raramente limpa o maleiro. Não o faz uma vez por ano. Nem a cada dois ou três. Não o faz aproveitando o ócio das férias. Limpa-o quando quer se lembrar. Dos tempos idos, dos amigos, das ex-namoradas, de velhas notícias e, principalmente, quando quer se lembrar de Rubens. Limpa o maleiro quando quer se fazer uma visita surpresa.
As caixas de papelão no maleiro de Rubens são conservas de lembranças, compotas lacradas e esterilizadas de recordações, são um necrotério das memórias de Rubens, todas etiquetadas nos dedões dos pés e guardadas em esquifes frigoríficos, tiradas de vez em quando para que Rubens se lembre delas, se lembre de qual foi a causa mortis de cada uma.
Nas caixas, Rubens guarda umas poucas velhas fotos, álbuns de selos, vários cadernos espirais e blocos com escritos e anotações, mais de uma centena de cartas recebidas e número quase igual de cópias em xerox das enviadas em resposta, mapas e roteiros das poucas viagens que fez, cédulas de extintas moedas brasileiras (cruzeiro, cruzado, cruzado novo etc), duas raquetes de pingue-pongue, um vidrinho âmbar contendo dois cristais de cianeto de potássio, também obtidos nos tempos do curso de química e com o objetivo de morrer jovem (antes dos trinta anos, planejou Rubens, um dia), uns jornais de poesia mimeografados, uns fanzines xerocados, rolhas de vinho e os tais desenhos, as tais histórias em quadrinhos agora nas mãos de Manoela.
Toalha enrolada à cintura, Rubens vai à cozinha, pega dois latões de cerveja e senta-se ao lado de Manoela. Um latão para ele, outro para ela. Brindam. Tomam um grande gole.
- Foi você quem desenhou estas histórias em quadrinhos, Rubens?
- Sim, fui eu. Foi o meu primeiro sonho profissional, ser um ilustrador. Por muito tempo, quis ser um desenhista de quadrinhos, de super-heróis. Sonhava em ver meu nome nos créditos dos gibis da Marvel e da DC.
- E por que não foi adiante?
- O de sempre, mais pretensão do que talento.
- Mas existem cursos, escolas de desenho...
- Sim, mas não existem escolas que nos dê talento.
- Talento se adquire, Rubens, com muito esforço, com muita dedicação.
Tadinha, pensa Rubens, olhando para os peitos de Manoela. Manoela é graduada numa dessas faculdades de "ciências" humanas, sociais ou coisa que o valha. Acredita que qualquer um pode ser o que quiser. Que esforço e empenho têm a ver com resultado e merecimento.
- Cheguei a frequentar alguns desses cursos, uns três ou quatro, na verdade; anatomia humana, perspectiva, luz e sombra etc. E treinava incansavelmente as técnicas ensinadas nas aulas, mas os ganhos na qualidade do meu traço eram pífios. E acho até que teria continuado a insistir por muito tempo nessa ilusão, mas o cara do último curso que fiz veio-me com a revelação, com a libertação, na forma de uma má notícia, mas, assim mesmo, com a minha libertação dos lápis HB e das canetas nanquim que insistiam em não responder aos meus comandos.
Rubens para um pouco para outro gole. Acaba com o latão. Pega outro, volta, olha os peitos de Manoela e continua.
- No intervalo de uma aula, queixei-me a ele de meu inexistente progresso, apesar de toda minha dedicação, e o que ele me disse, lembro-me até hoje : uma escola de desenho é como uma escola normal, Rubens, dessas que te alfabetizam, a professora te ensinou a ler e a escrever, apresentou as letras a você, mas daí a você se tornar um grande escritor, um Machado de Assis, fica por sua conta. Simples, claro e genial, Manoela. Ele podia me ensinar o be-a-bá, as primeiras letras da perspectiva, das proporções da figura humana, mas daí a eu me tornar um Jack Kirby, um John Buscema, um Jim Steranko, ficava por minha conta. Ou, nesse caso, não ficava. Faltava ainda um mês para o término do curso. Nunca mais voltei.
Manoela também acaba com o seu latão. Rubens olha pros peitos de Manoela, se levanta, pega outro latão pra ela e volta.
- É duro quando nossos planos e sonhos não saem do papel, né, Rubens?
- Bom, nesse caso, meus planos e sonhos não chegaram ao papel, literalmente.
Riem. Bebem mais. Se beijam. Rubens olha para os peitos de Manoela.
- Mas quer saber duma coisa? Até que tem uns personagens bem estranhos e interessantes aqui - diz Manoela virando folha a folha.
- Pois é, durante o tempo em que durou a ilusão, cheguei a criar uns super-heróis meio mequetrefes.
Rubens pega algumas folhas das mãos de Manoela, olha para os peitos dela, olha para os quadrinhos e se lembra. Tinha um personagem que era um cavaleiro medieval, com penacho vermelho no elmo e tudo; lembra-se de que nunca chegou a lhe dar um nome nem a definir seus poderes, e que o usou uma única vez, numa rápida aparição na história de um outro personagem : o matou numa sequência de três quadrinhos.
Tinha outro que era um pacato cidadão comum, desempregado, que respondera a um anúncio classificado para uma vaga na outrora soberba e imponente Cervejaria Antarctica de Ribeirão Preto; hoje extinta há muito. Ao se dirigir para a sala do entrevistador, passando pelo interior da fábrica, descuidou-se e caiu dentro de uma caldeira com caldo de cevada fervente; ao invés de matá-lo escaldado, a mistura de cevada, aliada ao metabolismo ímpar do cara, deu-lhe poderes sobre-humanos, ele passou a ser capaz de se transmutar num pinguim gigante - o símbolo da Antarctica até hoje -, num pinguim de proporções humanas. Igualmente ao cavaleiro medieval, Rubens se lembra de que não lhe batizou, de que não decidiu sobre seus superpoderes, que, afinal, talvez fossem... ser um pinguim gigante; nunca nem terminou a história com a sua origem.
Rubens vira outra folha e sorri, eis o carro-chefe de seu universo de heróis, o seu Homem Aranha : o Sinapse. O Sinapse era um cara com o rosto sempre nas sombras, de feições esfumaçadas e indefinidas (o que era muito útil para quem não sabia desenhar bem rostos; aliás, bem nada), usava sempre um grande chapéu marrom e um longo sobretudo de mesma cor. Possuia habilidades atléticas, acrobáticas e marciais acima da média, frutos de muito treinamento. O seu poder além-homem : o Sinapse era capaz de concentrar as cargas de todos os impulsos elétricos gerados pelo cerébro - as cargas das sinapses, portanto -, canalizá-las num único fluxo para a sua mão esquerda e liberá-las, contra o inimigo, num fulgurante e mortal raio azul-esverdeado. Porém, tal recurso só deveria ser utilizado em situações de extrema urgência, em inescapáveis sinucas de bico, pois assim que o raio era desferido, o Sinapse, literalmente, descarregava. Todos os seus comandos cerebrais cessavam temporariamente e ele apagava. Se o raio errasse o alvo, ou não se mostrasse intenso o suficiente para liquidar com o inimigo, seria o fim do Sinapse. O Sinapse é a versão (pseudo)científica de Rubens para a origem mística dos poderes do Punho de Ferro.
- E depois disso - fala Manoela, interrompendo as lembranças de Rubens -, nunca teve outro sonho profissional?
- Depois disso, tomei o caminho mais prudente para os sem talento, cursei uma faculdade e aqui estou, trinta e tantos anos depois.
Olha os peitos de Manoela, vai à cozinha e pega outros dois latões.
- Tem muita coisa escrita aqui nessa caixa, Rubens.
- Coisas irrelevantes, cartas, diários, anotações...
- Me baseando só nesse pequeno baú do tesouro sobre você que acabo de achar, vejo que você escreveu muito mais na vida do que desenhou. Em algumas madrugadas que durmo aqui, nesses poucos meses que nos conhecemos, às vezes acordo para ir ao banheiro e vejo você na sacada, escrevendo. Nunca teve o sonho de ser escritor?
- Talvez eu o tenha, até hoje.
- Puta que o pariu! E tá esperando o quê, Rubens? O que já fez por esse sonho? Faça cursos de redação e estilo, Rubens. Capacite-se. Envie seus originais para editoras, hoje, com a internet, isso ficou muito mais fácil. Invista nesse seu sonho, Rubens. Sempre há tempo.
O que as tais faculdades de "humanas" não fazem com a cabeça de uma pessoa?, pensa Rubens em meio a um longo gole. Manoela adora esses mantras neurolinguísticos. Essas frases motivadoras, esses clichês de autoajuda. Adora o termo "capacitar-se". Nessas horas, Rubens queria ter uma frota de caminhões, só para preencher todos os para-choques com as frases de Manoela. Rubens olha para os peitos de Manoela e decide que ela vale a pena. Ainda.
- Não fiz nada por esse sonho.
- E nem vai fazer?
- Não.
- Vai, simplesmente, deixar que ele morra?
- Não. Vou mantê-lo guardado e conservado a naftalina nessas caixas. Em livros não publicados nas prateleiras da Biblioteca do Sonhar. Vou mantê-lo minha Bagdá engarrafada.
- Biblioteca do Sonhar, Bagdá engarrafada? - estranha Manoela - Não é melhor parar com a cerveja, não?
- Ora, ora - sorri Rubens - está me dizendo que nunca leu o Sandman nº 50?

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9 Comentários

  1. Mas puta que pariu...esse povo que imagina incentivar os outros com esse papo de se empenhar, se reinventar; que quem faz sua sorte é você e outras obviedades, muitas vezes exageram na dose e sao um fdp chatos do caralho. Parece que nao entendem o desanimo e o simples desinteresse do outro no assunto. Ah, esse teu super heroi que adquiriu poderes de virar pinguim ficou fodao. A Manoela (coincidência com uma recente candidata a vice presidência?) Deve ter broxado o fim de noite do Rubens com essas filosofias de autoajuda.

    Cássio - Recife/PE

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    1. Broxado? Rapaz, você não conhece os peitos da Manoela...
      Não, nem pensei na vice do Haddad na hora de escrever o conto. Nesse caso, sim, o Rubens teria broxado.

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  2. Me lembro de um quadrinho do Rubens, onde o Capitão América jogava o escudo e...esse voltava e acertava o seu traseiro. Abundava o talento ali.
    Leitinho

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    1. O caralho! Esse infame quadrinho foi produzido pela sua mente doentia e a do Marcellão, e foi censurada - muito justamente, aliás - pela dona Néia.

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  3. Que fim levou a J? Despirocou de vez? Gostava de ler os comentários dela.

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    1. Vou aguardar as teorias, quem sabe com sorte elas acabam num asilo tipo Arkham em prosa ou ainda em quadrinhos.
      Em tempo: quanto tempo terá demorado essa conversa entre o Rubens e a Manoela, uns 20 min? E... por que dois cristais de cianeto? É pra morrer duas vezes? Rsrs

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  4. Huuummm... quer dizer que o Azarão queria ser desenhista de quadrinhos... que viadagem. Isso é verdade ou só inventou pro conto? Os personagens existiram mesmo?

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    1. Rapaz, quem queria ser desenhista era o Rubens, não eu. Eu não sou o Rubens, mas sou bem próximo dele, tomamos umas geladas de vez em quando. Vou perguntar se ele ainda tem mesmo as histórias e, quem sabe, eu não digitalizo alguns desenhos dos personagens e publique aqui?

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