Pequeno Conto Noturno (70)

Conheceram-se - Rubens e Silvana - em um momento de gravidade zero de suas vidas, num momento de espera em consultório médico, de coma induzido, de deixar estar para ver como é que fica, de deixar a indefinição definir-se por si. Conheceram-se - Rubens e Silvana- num momento de "quase" de suas vidas. Ele, quase num casamento; Ela, quase num divórcio.
Conheceram-se e reconheceram-se. Quiseram. Precisavam. Estavam precisados de se reconhecer. Há momentos em que a busca por um lago de Narciso, ainda que ele seja mera poça de lama, se faz mais premente que a pela fonte de Ponce de León.
Suas ideias se esbarraram, derrubaram café umas nas outras, desculparam-se e embaraçaram-se. Emaranharam-se. Os novelos de Ariadne de cada um - cada um fugindo (só para se enfurnar ainda mais) de seu dédalo, de seu quase - se enroscaram, perderam ainda mais os fios de suas meadas, mas consideraram que as tinham achado. Acima dos dois novelos enamorados, a tecerem futuros e tecituras, o gato cínico do Destino batia, estapeava e os jogava de  um lado para o outro.
A fala de um, ora completava, ora antevia, ora ecoava, a fala do outro. Clichês sobrepondo-se a clichês (filmes de guerra e canções de amor), Rubens sabia. Marionetes bem ensaiados, os dois, Rubens sabia. Cérebros em rara e sagrada comunhão, Silvana pensava. Intelectualidades nômades e sedentas que, final e merecidamente, se encontram oásis uma da outra, e se fundem e copulam e geram maravilhas, Silvana pensava.
Trocavam olhares em código Morse e e-mails criptografados, que ela, em arroubos quixotescos de quem mal escreve mas bem ama, pensara até em transformar num livro, o rebento bastardo e retardado deles dois.
Haviam, no entanto, ter que definir os seus "quases". Silvana optou por divorciar-se do "quase" em que estava e recuperar a sua liberdade - liberdade, para Silvana, é se lançar a esmo a uma outra sucessão de incertezas, a uma coleção de outros "quases". Rubens optou por contrair matrimônio (só no civil) com o seu "quase", fazer do quase a sua definitiva liberdade - liberdade, para Rubens, não é voar sem rumo nem bússola nem local de pousada; liberdade, para ele, é ser dono das chaves da própria gaiola.
Ela não gostou da opção dele. Sentiu-se, possivelmente, usada, iludida, lograda. No que tinha certa razão de suspeita. Rubens nunca tivera tesão fisico por Silvana. Ou a teria traçado já na primeira noite em que ela confessara-lhe seu interesse. Mas, por outro lado - egoísmo, teu nome é Humano -, não queria abrir mão da boa companhia de Silvana, de sua conversa divertida. Pensou que a simetria das ideias e a convivência poderiam trazer o desejo carnal (por isso, deu trela à Silvana). Não trouxeram.
Daí em diante, Silvana buscou atazanar e fuder com a vida de Rubens de todas as maneiras escusas que foi capaz de imaginar. Quase conseguiu. Quase. E como esse "quase" deve ter lhe amargado a amarga e recalcada alma... Rubens deu um basta. Sem aviso prévio. Demissão por justa, porém , não revelada, causa. Da noite para o dia, do hoje para o amanhã, passou a ignorá-la (por força das circunstâncias, viam-se em todos os dias). Passou a não olhar para ela e a nem lhe dirigir a palavra mesmo nas vezes - foram poucas depois que ela percebeu a nova postura dele - em que ela tentara conversar, buscara por respostas para a súbita mudança de comportamento.
Ela nunca soube a razão do ostracismo definitivo em que Rubens a jogara, nunca soube qual fora o estopim da explosão final. E esta foi a vingança de Rubens. Deixá-la sem saber. Sem respostas.
Anos se atropelaram sem que Rubens e Silvana se vissem. Até hoje. Madrugada. Silvana, a entrar na loja de conveniência de um posto de combustíveis, pagar pelo álcool colocado no carro; Rubens, de costas para a porta, no caixa, a pagar por mais um latão de cerveja, pelo álcool colocado em si mesmo - derramar cachaça em automóvel, é a coisa mais sem graça de que eu já ouvi falar, já disse Raul.
Silvana resolve se arriscar:
- Rubens? - mais um chamamento, um apelo, que uma pergunta?
Ele se vira, a vê e resolve recompensar o risco por ela corrido, responde:
- Ainda.
- Bebendo, a uma hora desta?
- Abastecendo, a uma hora desta?
- Um café, um capuccino, será que pode ser?
- Sem açúcar e sem afeto?
- Nunca vai me dizer, né? Nunca vai dizer o que de tão grave, ou transformado em tão grave por você, eu fiz para você virar de vez as costas para mim. Deve ter tido uma gota d'água, uma gota d'água que fez transbordar o seu copo de rum.
Rubens gostou da imagem evocada, mas manteve a altivez, deu um gole no latão.
- Ou uma chuva de gotas d'água, um toró delas.
- Nunca vou saber, né?
- Não.
- Um resumo da ópera, pelo menos...
- Você nunca entendeu a brincadeira.
- A brincadeira?
- É.
- O nosso amor a gente inventa pra se distrair, foi isso, Rubens?
- Exatamente isso.
- Filho da puta!!!
- Exatamente isto e não entendo por que isto seja algo vil, condenável em última instância e punível em praça pública.
- Usa a outro como distração e não vê o mal nisto?
- E também me deixo usar como distração. Não entendo como algo feito a propósito de distração, de entretenimento, possa ser torpe ou ofensivo. Pelo contrário. Ser distração para ou de alguém deveria ser tomado como o mais alto dos elogios, como uma condecoração, uma honraria de Estado.
- Que porra é essa, Rubens?
- Passávamos por uma fase de merda em nossas vidas, não era?
- Era.
- E quais eram os únicos momentos que faziam nosso dia valer cada uma de suas penas e de seus suores, quais eram os únicos instantes em que não pensávamos em lançar mão do cianureto e a da estricninca escondidos em nossos armários? Não eram feitos, esses fugazes átimos, justamente do amor que inventávamos para nos distrair?
- Você inventava, seu desgraçado, eu te amava de verdade.
Rubens dá mais um gole no latão. Conversar com Silvana dá um gosto a mais à cerveja.
- Então, no seu caso, Silvana, você é que era a invenção que o Amor criava para se distrair. A distração é a mais nobre e vital das atividades humanas. A distração é o que escolhemos fazer no tempo livre que temos, é o que escolhemos fazer quando, simplesmente, poderíamos não fazer nada. Dizem que, um homem, se conhece por seu hobby, por seu passatempo. O passatempo de um sujeito é o amor que ele inventa pra se distrair. É no passatempo que ele passa o dia todo a pensar, a ansiar pela hora. É para o passatempo que ele não vê a  hora de correr. É pelo passatempo que ele suporta a vida e se faz, até,  mais eficiente e competente em logo cumprir com os afazeres e os enfadonhos do dia. Ser o passatempo de alguém deveria figurar no pódio dos elogios, com direito a hasteamento de bandeira e execução do Hino Nacional. Eu escolhi você para passatempo, e tentei me fazer em palavras cruzadas pra você. Você queria, contudo, que nos transformássemos na merda oficial um do outro, no mesmo tipo de merda do qual fugíamos quando estávamos juntos, brincando.
- Você inventou isso tudo agora, né, Rubens? Ou já tinha tudo isso inventado e ensaiado há tempos, para quando, num possível, ainda que improvável reencontro, voltasse a falar comigo. Sabe a impressão que tenho, Rubens? Que você vive a criar enredos, scripts, cenas e encenações para as mais diversas situações que possam lhe ocorrer, falas e diálogos para todos os possíveis e imagináveis encontros que possa ter em suas caminhadas. Para cada pessoa que você gostaria de reencontrar, ou de não, você já tem um roteiro pronto e acabado, pronto para ser filmado, sob sua batuta e direção. Você se caga de medo do acaso, Rubens. Se caga de medo de ser pego desprevinido, sem algo inteligente e espirituoso para dizer, sem uma frase de efeito para impressionar.
Rubens seca o latão, vai até a geladeira da loja, pega mais um, paga-o à gostosinha do caixa, sai pelas portas de vidro e ganha as ruas.
Silvana segue atrás.
- Rubens, seu filho da puta, vai me dar as costas de novo, é?!?! Rubens, caralho, ainda não terminei com você! Rubens! Rubens! Rubens...
Rubens, já do outro lado da avenida, embrenha-se pela escadaria da praça escura e entorna o latão. Os gritos de Silvana, comungados aos lamentos dos motores e das buzinas e dos gatos no cio do fim da madrugada, são música que os seus ouvidos não querem mais ouvir.
Há muito que perdeu o interesse por vãos filósofos e suas (peri)patéticas filosofias.

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3 Comentários

  1. Tive que ler duas vezes porque a sonoridade me lembrou Eduardo e Mônica. Esse negócio de ora Rubens ora Silvana. Até a metade achei bem interessante do meio pra baixo podia rasgar e usar pra papel de bunda digital, existe isso? Bem, se não existe já pode patentear.
    "J"

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    1. lembrou-lhe Eduardo e Monica? Poucas vezes fui tão ofendido... Gosto pra caralho do Legião, mas Eduardo e Monica, assim como Pais e Filhos, eu considero canções de segunda linha.
      Isso do papel digital, eu não sei. Não sei como são os costumes onde você reside, mas por aqui, papel de cu é rola!

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    2. Onde eu "resíduo"? Rsrs ahhh um lugar como eu...
      "J"

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