Aprendiz de Jardineiro

Uma vez iniciado em seus códigos, a identificação e o apego a ela, à palavra escrita, foram imediatos e irreversíveis. Desenvolvi, ou, o mais provável, dado o instântaneo da empatia, aflorou em mim um enorme apreço, desvelo e devoção à palavra escrita, aos seus caracteres mágicos.
Desenhista frustrado que sou - incapaz desde sempre de transformar uma ideia em uma ilustração, de dar corpo pictórico a um desencarnado pensamento -, a palavra escrita, muito possivelmente, se achegou a mim como um substituto possível ao desenho, uma forma mais capenga de dar forma à ideia, um prêmio de consolação.
Sempre gostei, desde o momento em que aprendi a juntar minhas primeiras letras e sílabas, de ver uma ideia minha tomar forma , um pensamento meu fixado no papel, embalsamado e conservado na forma da palavra escrita, feito borboleta rara e colorida espetada por um alfinete em uma prancha de isopor e a decorar a sala de estar de um mórbido colecionador.
Sou um mórbido colecionador e empalador de minhas próprias palavras. Como às borboletas, mantenho-as espetadas em pontas de tungstênio de Bic Azul. Gosto, amiúde, de relê-las, de apreciá-las, lambê-las, minha própria cria.
Uma vez tendo trilhado, feito um romeiro, o suave caminho da cartilha Caminho Suave, a palavra escrita se tornou em fotografia de minha voz e pensamento tímidos, introvertidos. E tenho álbuns e mais álbuns de fotografias guardados em pastas de plástico, dentro de gavetas com esferas de naftalina por guardiãs. Cada escrito, cada texto, uma velha fotografia. A minha velhice maior nem se vê em minhas faces, se vê na minha escrita, na minha caligrafia - hoje menor, menos inteligível, de inclinação cansada, como quem não vê a hora de chegar o fim da página, da linha.
Cada ideia fixada em palavra escrita, uma cápsula do tempo com minha voz mantida em animação suspensa, uma reserva criogênica de meus pensamentos. Reler um escrito é como pôr para tocar na vitrola um LP com minha própria voz, quiçá um 78 rotações no gramofone.
Uma vez ordenado e consagrado em aprendiz de jardineiro da última flor do Lácio, não me recordo de nenhuma época, fase, momento ou circunstância de minha vida em que eu não estivesse a portar um lápis, uma caneta, um caderninho, um livro, um gibi, uma palavra cruzada.
No primário, eu era muito bom nos ditados e sempre tirava "A" em composição, o que hoje chamam de redação, e, os mais viados, de produção textual.
Olhando minha vida em retrospectiva, que é a diversão predileta de todo velho, me lembro de que sempre escrevi, constantemente. Gostava de caçar e capturar insetos nos terrenos baldios, depois, eu os desenhava em um caderno e escrevia suas características; tinha outro caderno no qual eu escrevia o nome de todo filme a que assistia e fazia minhas considerações sobre, minhas críticas pueris; em outro, fazia o mesmo com cada livro que lia como tarefa escolar; mantive, durante muito tempo, diários, meus muros das lamentações (alguns sobreviveram e os guardo até hoje). Escrevi cartas. Durante uns tantos anos, dada a ocupação profissional de meu pai, que nos levou a morar em várias cidades, escrevi centenas de cartas a amigos distantes (guardo ainda muitas das respostas que recebi). Fui redator e editor do jornal universitário O Pasquímico, cuja publicação sobreviveu a um único número e que foi pior e mais violentamente recebido pela comunidade acadêmica da Quimica -USP - Ribeirão Preto do que a revista Charlie Hebdo pelo estado islâmico.
Então, em 1989, e eis o motivo dessa postagem e de todo esse prolegômeno e lenga-lenga, eu pari um escrito que foi, por falta (ou desconhecimento) de melhor palavra, meu primeiro poema, poesia, ou coisa que os valham. Tenho para com eles, os meus poemas, o mesmo método que tinha para com os besouros que capturava, os filmes a que assistia etc. Escrevo-os em cadernos que sempre carrego comigo, depois os passo a limpo em uma folha ou de sulfite, ou de caderno, numero-os, dato-os e os empacoto. Embora, tenha relaxado, nos últimos tempos, no trabalho de passá-los a limpo. Eles chegaram a uma quantidade que eu jamais suporia quando do primeiro. Os já passados a limpo, o último com data de 24/05/2014, somam 689 poemas; tenho, portanto, ainda uns três anos de poemas dormindo em meus cadernos, esperando ganhar sua forma definitiva. Não sei se cheguei a mil. O dia em que fizer o meu milésimo poema, aposento-me. Igual ao Pelé.
Perguntaram-me, então, recentemente, acredito que aqui mesmo no Marreta, se eu lembrava do meu primeiro poema. Pergunta que trazia clara a enrustida vontade da pessoa ver o tal. Por pura preguiça de fuçar o meu baú, desconversei : disse que sim, que me lembrava dele, mas que não era nada que valesse a pena ser lido, menos ainda publicado.
Hoje, talvez por falta de assunto, resolvi publicá-lo aqui, a minha primeira obra, a Carta de Caminha de minha carreira literária - pãããããããta que o pariu.
Antes de expô-lo à apreciação e, possivelmente, ao escárnio dos leitores do Marreta, tenho que dar, para uma melhor compreensão, alguns esclarecimentos prévios do poema ao qual intitulei : V.
O V, nesse caso, assume várias conotações, conformações e configurações geométricas e espaciais. O poema surgiu por conta de um senhor de um pé na bunda que levei de uma namorada, de uma ingrata (ingratidão, teu nome é mulher) de nome Vanessa. Na época, eu tinha acabado de ler a fantástica minissérie em quadrinhos V de Vingança, de Alan Moore (sim, o filme V de Vingança é baseado na minissérie e, obviamente, mil vezes inferior a ela) e também, intelectual que me julgava, andava às voltas com os poetas concretos. Dessa mixórdia total, mais o pé na bunda e mais o sempre inspirador chifre, nasceu V.
O poema conta com 5 estrofes de cinco versos cada uma - V é cinco em algarismos romanos -, dispostas no papel a formar um outro V, quando lidas diagonalmente para baixo da primeira até a terceira e subindo, depois, pela quarta e quinta. Vários "Vês" dentro de "Vês". Fractais de "Vês".
Um puta dum poema cheio de presunção e de afetação. Uma viadagem só.
Tirei uma foto dele, pois não consegui reproduzir a disposição das estrofes aqui no texto, foto que não está das melhores, mas acredito que, com algum esforço, esteja no limiar do legível.

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5 Comentários

  1. Você demonstrou em seu texto introdutório que é também craque em contar um caso, em um resgate de memória. Gostei demais do que li e acho que é uma boa opção quando estiver atravessando um Saara de inspiração. Já disse várias vezes que a realidade (para mim) pode ser muito mais atraente que a ficção, dependendo apenas da forma como é contada. O que nos diferencia é que seu texto é mais sofisticado, culto e com vocabulário mais rico que os meus. Eu também era razoável em “composição”, mas nunca me preocupei muito com isso. Só próximo da aposentadoria é que resolvi escrever algumas coisas, naquela ânsia de ser lembrado. Você ainda está longe disso. Então, o que te move a escrever é outra coisa. Quanto ao poema, o que posso dizer é que você deu um imenso salto de qualidade ao longo do tempo. Eu já tive essa presunção também. Lembro-me ter escrito um texto lixo a que dei o idiota e pretensioso título de “confussão”, mistura tóxica de confissão e confusão. Uma bosta. Mas só recentemente me arrisquei nos poemas, até porque curto muito a velha métrica e a velha rima – e não tenho habilidade e inspiração para isso. Mas foi super legal conhecer sua “vida pregressa”. Por isso, continue a abrir seu “baú do Raul”. Muito legal.

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  2. Marreta, e a Black Friday? O que comprou? Conseguiu quanto de desconto?
    Achou cerveja na promoção?

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    1. Comprei porra nenhuma! Me dá nojo a raça humana, toda se aboletando no Magazines Luíza da vida.
      Pois, então, o único desconto que me interessaria seria justamente esse, na cerveja. Mas que nada! Nos supermercados aqui perto de casa, o sagrado líquido não teve um centavo de abatimento.
      Vão todos à putas que os pariram.

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    2. Eu achei a Prosit por R$ 1,19
      Levei para experimentar; não gostei, e a lata é de aço, coisa que não via há muito tempo em cervejas. Já tomou a Amstel? Muito boa, barata e é de primeira qualidade, melhor que Brahma e Skol, mas muito melhor

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  3. Achei interessante que você teve o cuidado de pôr e expor a foto do poema, fez todo sentido. Uma vez um amigo me disse que é preciso muita coragem pra tanto. A simplicidade nua do passional versus a preciosa capa da precisão que do tempo ensina. Obrigada por mostrar.
    "J"

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