Pequeno Conto Noturno (65)

Duas horas da manhã. Rubens pega a penúltima lata de cerveja na geladeira e vai verificar sua caixa de e-mails. Sim, Rubens tem lá o seu antigo e-mail, não é um completo homem das cavernas, embora considere que será justamente toda essa tecnologia que levará o homem de volta às cavernas, mas isso é outra estória.
Rubens não abre seus e-mails todos os dias. Uma vez por semana, quando muito. Sendo mais frequente a cada duas. E o e-mail de Rubens é igual à sua caixa de correio real : ou está vazio, ou repleto de propagandas. Se abre seus e-mails agora, é na espera da resposta de uma provocação feita a um velho amigo velho. A resposta do amigo não está lá.
Quatro mensagens de Yrina, sim. Depois de o quê, cinco, seis anos?
Na primeira, enviada às 22:43 h, Yrina diz que está por perto do apartamento de Rubens, que conseguiu um álibi e toda uma conjuntura de fatores favorável a uma pequena, rápida e clandestina incursão noturna, tomarem uma gelada juntos, dentro do carro, pelos velhos tempos, e informa o endereço da loja de conveniência onde se encontra no aguardo de Rubens; na segunda mensagem, às 23:01 h, apenas 15 minutos depois, Yrina diz já se sentir uma idiota, sentada dentro do carro, tomando as cervejas que queria tomar com ele; na terceira, às 23:19 h, Yrina diz que está em outro lugar, comendo algo para ir embora; na quarta e derradeira, às 23:44 h, Yrina diz que não entende o que fez de errado para que Rubens a tenha ignorado dessa forma, se mostra ofendida, machucada, ultrajada pelo "bolo" que levara de Rubens.
Rubens conhece Yrina. Ela dirá que ele a tratou com desdém, que fez pouco caso dela, que até riu com escárnio de sua vã espera. Tratante, ela dirá.
Rubens não tratara nem combinara nada com Yrina. Nem ao menos falara com ela. Há tempos que não.
E então, numa bela noite, Yrina, que sempre foi de grandes sumiços e de grandes urgências, consegue um perfeito alinhamento planetário para um reencontro, consegue um álibi para um crime quase perfeito, uma brecha no espaço-tempo, vistas as horas dos e-mails, de pouco mais de uma hora e se sente ofendida pela ausência dele?, pensa Rubens.
Uma fugaz e estreita fenda de coordenadas indefinidas entre o real e o Sonhar e Rubens tinha de estar ali, bem na hora, ao lado da fenda?
Yrina deve pensar que Rubens é feito a massa de idiotas que habita o planeta, que vive 24 h por dia conectado a e-mails, a redes sociais e outras coleiras eletrônicas. Deve pensar, não; Yrina deve se esquecer, pois sabe da alergia de Rubens a tais traquitanas.
Yrina dera sorte, de certa forma. Não fosse a espera de Rubens pela resposta do amigo, as mensagens de Yrina poderiam ter ficado lá perdidas por mais uma semana, ou duas, sem serem lidas. Foram lidas no mesmo dia, ainda que não a tempo.
Yrina dirá que Rubens é covarde e cagão.
Muitas vezes, pensa Rubens, o que chamamos de covardia nada mais é do que a ausência de um bom álibi, e a tão vangloriada coragem, uma mão de pôquer cheia deles.
Rubens não está sozinho nos últimos tempos. Virna reapareceu há mais de ano e não dá mostras de querer partir. Nem Rubens de lhe tomar a chave da porta da frente, ou a gaveta em que ela guarda suas calcinhas. Há as aporrinhações da vida a dois, assente Rubens, mas ele tem dormido mais, tem bebido menos.
Ainda que Rubens tivesse lido os e-mails a tempo, não teria ido ao encontro de Yrina. Não teria um álibi.
Ainda que tivesse um álibi, ou que forjasse um de última hora, que dissesse, por exemplo, que tinha perdido o sono e precisava sair para uma caminhada em busca de mais bebida, álibi que pareceria dos mais consistentes para Virna, não teria ido ao encontro de Yrina.
Rubens não tem mais disposição, paciência, estômago, ou chamem do que quiserem, para véus e escamoteios, para jogar jogos de estratégia, para brincar de esconde-esconde.
Ainda que tivesse lido os e-mails em tempo, que tivesse ou forjasse um bom álibi, que decidisse, nem que por puro saudosismo, reviver seus tempos de 007, de disfarces e vidas duplas, não teria ido ao encontro de Yrina.
Virna tinha procurado por Rubens duas vezes hoje - deve estar ovulando - e o velho pau bem correspondeu em ambas. Nenhum homem que tenha dado duas boas fodas em um dia tem o que fazer na rua, de madrugada. Nada tira um homem de pau mole de dentro de casa.
Rubens fecha os e-mails, desliga o computador, pega a última lata na geladeira e vai tomá-la na sacada escura. Rubens entende a decepção, a frustração e mesmo a possível ira de Yrina, mas não compartilha delas. Podemos controlar os sonhos, não a realidade. Querer forçar a realidade à bitola de nossos trilhos é, geralmente, destroçar sonhos, fazê-los descarrilar.
Rubens é  um homem velho. Cansado. Se sabe velho e cansado. Não nutre revolta contra isso. Nem inúteis saudosismos. Não tem mais estrelas nos olhos nem jeito de herói, não é mais forte nem veloz. Aceita placidamente tudo isso. É mais fácil viver assim.
Rubens é um homem pesado de tempo. Rubens é o que o tempo fez dele. Dá o último gole em homenagem a isso e vai se deitar.

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