Pequeno Conto Noturno (63)

- Gosta do que fiz no cabelo? - pergunta Francesca chegando ao apartamento de Rubens, jogando os sapatos a um canto, pendurando a calça na cadeira da sala e ficando só calcinha e bata.
- Gosto - responde Rubens, que já ia pela metade de uma garrafa de gim, homenagem à morte de Cauby Peixoto, o Professor, e uma dessas coletâneas com os  20 maiores sucessos do mestre já rolava no toca-CD. Rubens se recusa em usar a palavra player.
(...saber que por você eu fui traído, a minha dor faz sangrar o coração, justamente, quando eu tinha decidido, foi negada a minha cura, fui levado à loucura...)
- E o que foi que eu fiz? - retruca Francesca, preparando uma dose para si e, pelo visto, disposta a deixar a noite de Rubens menos tranquila.
- Mudou-o.
- Gostava dele como era antes?
- Gostava.
- E como ele era antes?
- Diferente.
- Mentiroso. E se eu dissesse que não passei nem perto do cabeleireiro?
- Explicaria porque gosto dele do jeito que está e não sei dizer o que nele foi modificado. Arranque, no entanto, um único pentelho dessa sua buceta ruiva e eu digo de onde ele foi tirado.
- Canalha.
(Se subiu, ninguém sabe, ninguém viu, pois hoje o seu nome mudou, e estranhos caminhos pisou. Só eu sei que tentando a subida desceu...)
- E as minhas unhas, Rubens?
- Gosto delas nas minhas costas.
- Mudei a cor do esmalte, gostou?
Rubens mal sabia se Francesca usava esmalte, mas se esforça em simulado interesse e olha para as unhas dela.
- Vermelho?
- Goiaba temporã.
- E esperava que eu soubesse disso?
- Gosta?
- Gosto.
- E a dos pés.
Rubens seria incapaz de dizer se Francesca tinha cinco dedos em cada pé, mas olha para as unhas do pé, também.
- Bege, areia?
- Luau na praia, gosta.
- Gosto.
- Gosta porra nenhuma, Rubens, aliás, você não gosta de porra nenhuma. Você dorme, acorda, come, bebe, trabalha, trepa, mas parece que tanto faz uma noite de oito horas de sono ou período de insônia braba, pra você, frango tem gosto de peixe, peixe tem gosto de frango, tudo tem gosto de nada, cuida, admito, e satisfaz bem a minha buceta, mas uma punheta seria o mesmo pra você. Não sente o gosto de nada, Rubens, nada te empolga, a prova é a merda desse gim, dessa porra com gosto de desodorante.
(Se o Amor é uma pérola clara, se tem o ardor de um rubi se estão nesse amor que devoto a ti, a gema rara e o rubi)
E, impulsionada pelo calor produzido pelo gim, Francesca se livra da bata, revelando o colo e os peitos - médios - sardentos.
- Sabe o que eu acho, Rubens? Se você encontrasse uma lâmpada com um gênio que lhe concedesse três desejos, você não saberia o que pedir, não gosta de nada a ponto de.
- E não poderia ser uma gênia, vestida a la odalisca, tipo Jeannie é um gênio? Nesse caso, um pedido, pelo menos, eu conseguiria fazer.
- Vá tomar no cu. Tá vendo, não conseguiria pedir nada. Não gosta de nada.
Rubens gosta - ele pensa, mas não diz para Francesca - de dar uma boa trepada e depois dormir tranquilo, sem muita conversa; hoje, pelo visto, e por causa de cabeleireiros viados que só "acertam as pontas", que só fingem que cortam os cabelos das clientes, e de projetistas viados de esmaltes que dão nome às cores quando estão com tesão na argola, ele não terá uma coisa nem outra.
Rubens gosta - de novo pensa e não diz - de se sentar à sacada, de madrugada, e contemplar o céu, à espera de uma boa ideia, de uma chuva de meteoros, de um disco-voador; hoje, no entanto, uma frente fria trouxe nuvens e uma rala garoa, um salpico de chuva.
Rubens gosta, e gosta muito, de um cuzinho, e já passara da hora do de Francesca lhe fazer as honras e as cortesias, mas, de novo, Rubens nada diz. Não está com forças, hoje, para travar guerras perdidas.

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4 Comentários

  1. Gostei muito, achei na verdade, que é o Rubens um bom detalhista.

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  2. E aí, professor, tudo bem?
    Esse Rubens tá parecendo com o senhor, louco pra comer um cu, mas só fica na punheta mesmo.

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  3. muito bom, amigo. Muito Bukowski, muito Henry Miller. Abraço.

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