Vênus de Cloacina : A Deusa do Boa Cagada

Deuses são criados de acordo com as conveniências humanas, de uma sociedade, de uma época. Deuses são adorados e cultuados para que, em troca, correspondam e satisfaçam aos anseios e necessidades das pessoas. Ou alguém é mesmo capaz de achar que o bicho homem se submeteria, se curvaria, esfolaria os joelhos num genuflexório, se humilharia, se reduziria a um merda frente ao seu deus se não fosse por interesse? Se não fosse na esperança de uma recompensa?
Deuses são o atalho do preguiçoso. Deuses são criados para que deem ao ser humano o que ele deveria obter através do esforço, dedicação, planejamento, estudo etc. Deuses são a resposta rápida - porém, estão longe de ser a solução - para tudo.
Deuses são uma mão na roda, são pau pra toda obra, ou, como mais afrescalhadamente se diz hoje, deuses são multifuncionais, multiusos. A tudo se prestam e socorrem. Incapaz de entender um fenômeno natural? Valha-me deus! E um deus que represente e personifique tal fenômeno é criado - todas mitologias, a exemplos, contam com seu deus do raio e do trovão, do sol, da noite, dos mares, das tempestades, dos vulcões etc. Servem, os deuses, igualmente, para assegurar o êxito de tarefas complexas que são, via de regra, malplanejadas e mal executadas pelo homem - os deuses da colheita, da fertilidade, do matrimônio etc. Servem para justificar conquistas e promover massacres - os deuses da guerra. Servem mesmo para nos garantir passagem tranquila pela alfândega final - os deuses da boa morte.
Tirante a cristã, a mitologia greco-romana nos é a mais familiar. Seja por causa dos rudimentos nos transmitidos na escola, seja por interesse pessoal de leitura, seja pelo contato travado com suas versões para o cinema, ou para as histórias em quadrinhos, todo mundo conhece, ainda que de forma desordenada, falha, confusa e deturpada, um pouco de mitologia greco-romana. Gregos e romanos tiveram praticamente o mesmo panteão de deuses. Deuses que, a bem da verdade, foram criados pela imaginação dos gregos e, depois, usurpados pelos romanos e tomados como se fossem legitimamente seus, quando da conquista do território helênico pelo Império Romano; os deuses gregos vieram no pacote, foram parte do butim, os romanos, basicamente, apenas trocaram-lhes os nomes.
A exemplos : Zeus/Júpiter era o deus criador, pai  dos deuses e dos homens; Hera/Juno, esposa de Zeus/Júpiter e deusa da família e do matrimônio; Apolo/Febo, deus do sol, da música e da profecia; Ares/Marte, deus da guerra; Afrodite/Vênus, deusa da beleza e do amor; Palas/Minerva, deusa do conhecimento e da sabedoria; Artêmis/Diana, deusa da caça e da lua; Deméter/Ceres, deusa da agricultura; etc etc.
Esses, contudo, eram os maiorais do Olimpo, a diretoria, os manda-chuvas, os que se ocupavam das grandes questões e aflições humanas; seriam, a mal comparar, o governo federal, os deuses do Planalto. Mas e os deuses das pequenas causas, das aporrinhações diárias, dos percalços cotidianos? Havia os deuses do mundano? O deuses do comezinho? Sim, havia.
É de um deles que direi agora, de uma delas, já que uma deusa. Ontem, tomei ciência dela através da excelente série "Grande História e Pequenas Coisas", de produção do canal H2. Com a expansão do Império Romano e o crescimento de suas principais cidades, um grave e urgente problema se apresentou aos seus governantes : o da eliminação dos dejetos humanos, o de um sistema de esgotos eficiente que impedisse que os grandes aglomerados urbanos se tornassem verdadeiras fossas a céu aberto.
Nas pequenas cidades, os sanitários públicos eram dispostos na forma de um banco conjunto - não havia compartimentos individuais - sob o qual sempre passava um pequeno córrego ou uma vala d'água. O cara cagava e daí, rio abaixo. Em grandes metrópoles, porém, tal solução era inviável.
Um parêntese : para nós, homens modernos, o problema dos romanos com o esgoto pode parecer coisa pouca. Pois saibam que não faz muito tempo que as pessoas, como fazemos hoje, sentam-se confortavelmente em seus privadões, soltam tranquilamente seu barro, dão a descarga, veem seus cagalhões desaparecer como que por mágica e, por fim, os mais sensíveis, aspergem borrifadas de Bom Ar Flores do Campo no ambiente. O primeiro protótipo de vaso sanitário, como hoje o concebemos, só surgiu em fins do século XVI, em 1596, pelas mãos cheias de coliformes fecais de um lorde inglês, Sir John Harrington, poeta e protegido da Rainha Elizabeth I. Mas a invenção não pegou, foi considerada apenas como mais uma excentricidade de um nobre, de quem não tem o que fazer da vida. O vaso sanitário de Sir John Harrington não caiu no gosto das pessoas, que seguriam a fazer o que sempre tinham feito e que consideravam melhor e mais prático : cagavam e mijavam o dia inteiro dentro de baldes e, ao entardecer, a uma determinada e preestabelecida  hora, jogavam o conteúdo mefítico por suas janelas. O projeto só foi retomado em meados do século XIX, em virtude do evento conhecido como Great Stink, o Grande Fedor de Londres, em 1858, em que, depois de séculos de despejo de merda humana, as águas do Tâmisa estavam pior que as do Tietê.
Fim do parêntese e voltando.
Os governantes romanos, diante do problema da merda, que está longe de ser um problema de merda, não se deixaram abater ou desanimar. Agiram pronta e rapidamente, com a destreza e a eficiência que parecem ter sempre sido a marca registrada dos poderes públicos : criaram - talvez por um projeto de lei, quem sabe muito discutido no Senado e às custas de muito mensalão e pixuleco - a deusa Cloacina, também conhecida por Vênus de Cloacina (do latim cloaca, que significa esgoto ou dreno).
Quero dizer, criaram porra nenhuma, copiaram de novo, que, como dito anteriormente, em relação aos povos que os antecederam no comando do mundo, os romanos não eram povo dos mais cultos, eram os emergentes da época, os novos ricos, a classe C, digamos assim, obtiveram poder e grana, mas continuaram bárbaros. Copiaram, dessa vez, dos etruscos, que a tinham como a divindade da Cloaca Máxima, o espírito do Grande Esgoto.
Uma deusa do esgoto criada e problema resolvido. A Vênus de Cloacina era cultuada como a deusa da pureza e da limpeza. Como toda deusa que se preze, tinha o seu templo, o Santuário da Vênus Cloacina, que ficava numa das avenidas mais movimentadas e famosas da época, a Via Sacra. Será que Cristo, a caminho do Gólgota, parou no santuário da Vênus de Cloacina para dar sua rezadinha, fazer sua fezinha, ou melhor, suas fezezinhas (isso é influência sua, Jotabê)?
Como eram as orações feitas à deusa dos esgotos? Até imagino as oferendas levadas pelos fiéis.
Tamanha foi a importância da deusa Cloacina que até lord Byron, poeta e metrossexual da era vitoriana, ele próprio um deus entre os devotos do tédio, do spleen, do niilismo e de outras viadagens, compôs versos em louvor a ela :
"Oh Cloacina, Goddess of this place,
Look on thy suppliants with a smiling face.
Soft, yet cohesive let their offerings flow,
Not rashly swift nor insolently slow"

(Oh, Cloacina, Deusa desse lugar,
Olha para teus suplicantes com face sorridente
Suave, mas coesos deixar fluir as suas ofertas,
Não precipitadamente rápida nem insolentemente lento)

Para um único detalhe, os historiadores não encontraram explicação, conexão. Dizem não saber como a deusa etrusca dos esgotos, a Cloaca Máxima, foi associada pelos romanos à figura de Vênus, a deusa do amor e do intercurso sexual, ou seja, da furunfa. Não sabem? Que porras de historiadores são esses? Que merdas de intelectuais? Para mim, a associação é óbvia. Cloaca, rego, cu, buraco. Sério que não veem ligação com a deusa do amor e do sexo?
Hoje, somos afortunados, temos particulares templos à Cloacina em nossas próprias casas. Cada banheiro é uma pequena capela em devoção à Cloacina. Falando nisso, irei agora, ou quando as tarefas domésticas me derem folga, ou ao fim da noite, antes de me deitar, fazer minhas condoídas orações à Vênus de Cloacina. Está indo para uns três dias que eu não recebo suas graças. Pããããããta que o pariu!!! 
Na foto de cima, a base do Santuário da Vênus da Boa Cagada; na de baixo, um denário romano de prata com a efígie da Vênus na "cara" e o seu santuário na "coroa".

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