Se Eu Quiser Falar Com Deus

- Eu, Senhor, pro inferno? - o cara recém-morto e recém-chegado às barbas de deus - E por vaidade, ainda por cima, Senhor?
- É o que consta aqui, no Livro dos Séculos. Amém.
- Amém, Senhor. Nunca tive a menor vaidade ou luxo, sempre fui dos mais desapegados ao material, Senhor.
- Sei.
- Sabe, claro que sabe, é onisciente, não é? Mesmo jovem, Senhor, quando os hormônios fazem-nos, aos machos da espécie, verdadeiros pavões empoados. Mesmo jovem, Senhor, nunca dei importância para a aparência, nunca me apeteceram roupas de grife, tênis importados, nada disso, Senhor, para mim, qualquer coisa estava de bom tamanho.
- Sei.
- Sabe, eu já sei que o Senhor sabe, o que só me faz ver que toda essa conversa é uma perda de tempo, provavelmente o Senhor deve ter mais o que fazer.
- O universo pode esperar, meu filho.
- Nunca me incomodei, Senhor, com as púberes acnes e espinhas, nunca lhes passei pomadas ou tentei escondê-las. E o cabelo, Senhor? Cortei-o, por décadas, no mesmo barbeiro. Barbeiro, Senhor, nem cabeleireiro era. E o mesmo corte a vida toda, enquanto os tive para cortar. E de barbeiro mudei porque minhas cada vez mais cansadas e varicosas pernas não mais davam conta da légua tirana, Senhor.
- Sei.
-Percebeu o que eu disse, Senhor? Minhas pernas já não davam conta da distância. Nunca tive nem carro, Senhor, de tão simples e contemplativa a vida que levei. Vaidoso, eu, Senhor? Nem carteira de habilitação tive.
- Sei.
- Se tive algum mínimo apego, foi, durante um tempo, pelos livros, Senhor. Ainda assim, nunca os comprei em quantidade para acumulá-los com orgulho de colecionador, os tomava em empréstimo na biblioteca municipal. Tampouco eles ficavam expostos na sala, em alguma estante ou em cima da mesa de centro, às vistas e para a apreciação das visitas, um mostruário de uma pretensa intelectualidade, embora ela fosse autêntica no meu caso. Aliás, nunca tive estante ou mesa de centro, e as visitas, raríssimas. Ficavam escondidos no guarda-roupas e não passaram de vinte livros, Senhor, isso durante uma vida inteira, e na velhice me desapeguei deles também, a vida era mais simples sem eles.
- Sei.
- E já que estamos a falar da velhice, Senhor, acha que me importei com ela, que me atacaram vaidades tardias, que me afligiram quereres de uma juventude rediviva? Nada disso, Senhor. Começaram a branquear-me os cabelos, nunca os tingi; começaram a cair e a não mais nascer, nunca apliquei ao couro cabeludo panaceias antiqueda, muito menos aqueles rídiculos implantes capilares; caíram-me de todo, nem chapéu jamais usei para esconder a calva; fiquei broxa, Senhor, nunca um farmacêutico ouviu pedido meu de viagra; capitularam-me os dentes naturais, nunca tive daqueloutros que dormem no copo d'água. Vaidoso, Senhor?
- Sei.
- Pelo contrário, Senhor. Quanto mais limitações a decrepitude me impunha, mais eu gostava; a cada nova impossibilidade física, um alívio. Cada limitação, uma desobrigação, na verdade. Uma libertação de ser isso ou aquilo, de ter que fazer isso ou aquilo e, principalmente, de querer isso ou aquilo. Mais simplicidade e sossego, Senhor. Cada restrição, um habeas corpus para me ver livre do angustiante desejo.
- Sei.
- Atingi um estado quase pleno de simplicidade e de sossego nos meus últimos anos de vida, de fazer inveja ao monge mais xiita. Que foi o que sempre ambicionei, Senhor : sossego. Vaidoso, eu? Até minha morte, Senhor, foi simples e despretensiosa, acabei de morrer sozinho, em casa, sem dar trabalho pra ninguém. Aliás, tenho certeza, só me acharão daqui a uns dias, e me procurarão muito mais incomodados pelo meu mau cheiro do que pela minha falta sentida. Digo isso, Senhor, sem nenhum pingo de autopiedade, prefiro mesmo assim, sem choro nem vela. Infarto, né, Senhor?
- Dos fulminantes, meu filho.
- Eu lhe agradeço por isso, Senhor.
- Ô, mania... Não tenho nada a ver com isso, meu filho, eu não mato ninguém, por quem me tomam, por algum serial killer cósmico? Eu só os faço imperfeitos, com prazo de validade.
- Perfeito que é, por que nos faz imperfeitos?
- É de propósito, meu filho. Eu não consigo não ser perfeito, os faço perfeitamente imperfeitos, tanto que não escapa um para contar história, não fica um para semente.
- Saiu-se bem dessa, Senhor.
- Eu sei, meu filho.
- Repito, vaidoso, eu, Senhor? O inferno para quem pautou sua vida pela simplicidade e pelo sossego?
- Justamente, meu filho. Quem disse que Eu os criei, e ao mundo, para que tivessem sossego e tranquilidade? Pu-los ao mundo para correrem inutilmente atrás de desejos, que, ao mesmo tempo, eu incuto e proíbo. Criei-lhes para o desespero constante das buscas vãs e inalcançáveis; como a qualquer outro bicho, para o frenesi da eterna competição, para a ganância, a beligerância, a inquietação, para o dormir com um olho e ficar em alerta com o outro, para o apuro, o atropelo, o açodamento. Percebe, meu filho?
- Não, Senhor.
- O sossego é o maior luxo a que um ser humano pode se dar. Isto posto, você foi um ostentador dos grandes, levou uma vida de nababo : o inferno, meu filho, e nem cabe recurso nesse caso.
- Senhor?
- Diga, meu filho?
- Não sabe o que vou dizer?
- Não me venha com dialéticas, meu filho, nunca tive paciência para elas.
- Senhor, se eu lhe mandar a puta que o pariu, minha situação piorará em muito?
- Em nada, meu filho.
- Vai à puta que te pariu, Senhor!!!!
- Há! Há! Há! Não dá, meu filho. Não tive mãe. Eu sempre existi. Touché, meu filho. Descendo...

(O cara ainda pensou em xingar deus de filho da puta, mas o mesmo impedimento dogmático da injúria anterior o fez desistir)

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5 Comentários

  1. Eu não conheço quase nada dos trocentos posts que já divulgou. Mesmo assim, arrisco-me a dizer que este seguramente é um dos cinco ou dez melhores que já escreveu (e eu não conheço quase nada!). Texto genial!

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    1. Trocentos? Só espero que, sendo você o rei dos trocadilhos, não esteja relacionando "trocentos" a "trôços".
      Valeu, como sempre.

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  2. Adorei o texto, como sempre muito bom. :)
    "J"

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    1. obrigado. e, se possível, envie seus comentários sempre logada ao elemento jota, para evitar imitadoras.

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  3. Caberá uma continuidade? Muito bom, muito bom mesmo. Simples e criativo.

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