Casa e Jardim

Em meu caminho a pé para o trabalho, passo por casas cujas fachadas - seus alpendres, varandas, portas e janelas - parecem saídas das capas da revista Casa e Jardim, ou, ao menos, dignas de figurarem nelas.
Coisa bonita mesmo de se ver. Flores de várias espécies, tons e cores, uma paleta de pigmentos vegetais - xantofilas, carotenos, antocianinas etc -, a justa, bem dosada e de bom gosto combinação entre eles, a feliz e arquitetada mescla do amarelo de uma flor com o vermelho da outra, o violeta a dançar um tango com o laranja, e o branco correndo por fora, a fazer fundo e moldura : flores feitas em organizada caixa de lápis de cor.
O apuro e o planejamento dedicados às plantas cabem também aos vasos; igual valor é dado ao conteúdo e ao continente. Vasos de todas as dimensões, formatos e confeccionados nos mais sortidos materiais - barro, cerâmica, porcelana, lata, ferro fundido, xaxim - e até utensílios outros, alienígenas, não projetados originalmente para abrigarem a beleza cativa, para serem gaiolas de flores.
Em uma das casas, a pessoa transformou velhos regadores, velhos bules e chaleiras esmaltados em vasos, e também um esmaltado penico daqueles antigos, adubo é o que não faltará para a felizarda plantinha nele cultivada. Tudo muito bem pintado, restaurado e bem disposto.
Outra, aproveitou - ou reutilizou, como preferem os afrescalhados politicamente corretos - latas de conservas, dessas que vêm com ervilhas, milho, salsicha, pêssegos em calda etc e que são abertas com o bom e velho abridor de latas. As latas foram pintadas em diferentes cores, tiveram suas tampas denteadas mantidas - um toque especial - e violetas passaram a habitá-las. As latas foram amarradas com arame, lado a lado, à grade da grande janela da sala, que dá para a rua, enfileiradas num dégradé do roxo mais intenso ao branco, transitando pelos lilases e pelos rosas, oito latinhas no total.
Outra, ainda, utilizou um estrado de madeira de uma cama de solteiro. Deu-lhe um trato, lixou, envernizou. Colocou-o inclinado, apoiado entre o chão e uma parede de seu alpendre. Construiu um varal de flores - begônias amarelas, gerânios, azaleias e mais uns dois tipos de flores cujos nomes me são desconhecidos.
Na sacada de um apartamento no 2º andar, alguém pegou quatro grossos tubos de PVC, cortou-os longitudinalmente ao meio, passou rústicos barbantes por furos em suas extremidades e os foi dispondo um abaixo do outro, como fossem degraus de uma escada de corda e pendurou o conjunto ao teto. Construiu seu pequeno jardim suspenso - cactos, suculentas e pimenteiras ornamentais.
Passando de manhã em frente a esses íntimos e pessoalíssimos cartões-postais, fico pensando em seus jardineiros, em seu zeladores. Se são tão ciosos de si mesmos quanto o são de seus jardins. Fico pensando se dispensam mesmos esmero e tempo, sei lá, aos seus dentes, às suas unhas encravadas e com micose, às suas caspas e seborreias, aos seus maus hálitos, aos seus corrimentos e a outras enfermidades filhas do desleixo.
Passando pela manhã mal germinada da madrugada, ainda e geralmente de ressaca, em frente a esses paraísos artificiais, a esses édens metódicos e obsessivos, fico pensando nas pessoas por detrás deles : que tipo de loucura as aflige?

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4 Comentários

  1. Adorei e lembrei um bocado da minha mãe.
    Quais mistérios guardam o portão do coração do poeta, quais os combatentes peleam, rolam, chafurdam na lama dos seus pensamentos?
    "J"

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  2. A mesma loucura que tem uma pessoa ao sentar-se para ler um livro (ou para registrar seus pensamentos, suas fantasias e inquietações). Essa loucura mansa tem o nome de prazer.

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