Pequeno Conto Noturno (50)

Rubens não gosta da cidade. Menos ainda do campo. Rubens não gosta do apartamento em que mora. Menos ainda de sair dele. Rubens não gosta de onde está. Menos ainda de viajar.
Rubens ouvira, certa vez, que o amor não dura mais que 70 dias, ou 32 cópulas, o que vier primeiro. Antes, a cota de cópulas se cumpria primeiro; hoje, Rubens prefere dar tempo ao sábio tempo.
Com Lola, nenhuma das duas situações limítrofes ainda se deu. Talvez por isso, e só por isso, Rubens tenha concordado com o convite dela para um fim de semana no campo. Um sítio, uma casa de um amigo de um primo de outro amigo etc. Ao pé de uma serra, disse Lola, com muita neblina, agora que é inverno, um bom lugar para tomarmos vinho, até cairmos. Você tem cara de quem gosta de ambientes frios e nebulosos, argumentou Lola.
Rubens tem semblante e humor frios e nebulosos, mas gostar de tais lugares? De se ver rodeado de si mesmo mais que o de costume? Rubens foi convencido mais pela oferta de vinho ilimitado que pela neblina e as belezas orográficas da região. E, claro, pelos pentelhos ruivos e grossos de Lola, que lhe tomam a vulva, a virilha, alastram-se feito grama rasteira pelo períneo - a região da "costura", o famoso campinho, onde se dá o bate-bola - e chegam-lhe ao cu, ao ainda inexplorado, por Rubens, cu.
Rubens e Lola chegaram ao tal sítio em hora próxima ao almoço. Mas não almoçaram. Você tem fome de quê? Nem desfizeram as malas. Lola quis trepar logo de cara. Tirar os possíveis maus eflúvios da casa, fechada há tempos, incensá-la com o cheiro dos dois, disse Lola. E treparam.
E foram para a varanda. E entraram no vinho - um ménage à trois com Baco, mas sem viadagens. E em uns queijos que por lá havia, a curar e a mofar. E música. Chico. Oswaldo Montenegro. Rô Rô. Legião. Cartola. Ney. Engenheiros. Raul. Sérgio Sampaio. Belchior. Adoniran. Dolores Duran. Bethânia.
Rubens recitou, de cor, um poema de Bukowski, o Pássaro Azul, mais para si mesmo que para Lola e para a paisagem, mais para verificar se o seu próprio pássaro azul ainda continuava em si. E ele continuava.
Assistiram ao pôr do sol. Roxo, pelo resíduos em suspensão e pela tão prometida neblina, já incipiente. Roxo, com tons de amarelo, feito hematoma a se descorar, a ser reabsorvido pelo corpo. A noite a reabsorver a alma que cedeu ao dia. A vida, que de tudo se nutre, a reabsorver sangue podre, vampira saprófita.
Treparam de novo. Ali mesmo, na varanda. Às vistas das primeiras estrelas (a estrela d'alva no céu desponta, e a lua anda tonta de tanto esplendor) e dos vaga-lumes mais afoitos. E, para Rubens, já era conta de bom tamanho, já poderia muito bem voltar para casa. Lola, porém, estrategicamente, prometera liberar o cuzinho nessa viagem, mas só no último dia, quando estivessem de partida, o que significava mais um ou dois dias no meio do mato.
Entraram. E mais vinho. A adega do amigo do primo do outro amigo era mesmo boa e farta. E mais queijos. Lola, ainda pelada, ainda com a porra de Rubens a lhe secar nos pentelhos, levantou-se e disse que ia se enrolar em um cobertor e preparar na cozinha um caldo tonificante para os dois, uma receita de sua terra, um tacacá. Rubens não queria caldo restaurador nenhum, queria simplesmente ceder ao cansaço, ao ligeiro ardor no pau esfolado e dormir, hibernar.
Mas, pelo percebido, Lola tinha ainda planos para Rubens, e ela é quem estava no comando. E veio Lola, de peitos de fora, trazendo o tacacá em uma cuia decorada. Um sopão de aroma forte e bom, cheiro de alho, coentro, uns camarõezinhos de água doce, folhas que Lola disse serem de jambu, uma planta com propriedades anestésicas, e uma gosma a tudo recobrir e sobrenadar, uma goma extraída da mandioca. Ficaram um tempo aconchegados no sofá, corpos aquecidos pelos cobertores e pelo tacacá.
Um filme, anunciou Lola uma outra surpresa para a noite. Ninfomaníaca, de Lars von Trier. Uma dessas desculpas intelectuais para quando a mulher quer ver pornografia, um desses subterfúgios "cabeças", de arte, para a mulher não admitir que adora uma boa putaria. Rubens mais bebeu que respondeu aos comentários e às observações lascivas de Lola sobre o filme, mais cochilou que se animou à manipulação de Lola de suas bolas do saco. Era óbvio que Lola queria uma terceira trepada, ali no sofá.
Três no mesmo dia?!?!? Lola estava pensando o quê? - pensou Rubens. Que o pau dele tinha uma prótese? Que a sua próstata era uma dessas fontes luminosas de praças, a jorrar indefinidamente luz e alegria? Rubens enrolou, protelou, encheu mais vezes a taça de Lola que a sua, até que ela adormeceu. Rubens, finalmente, teria sua hora, seu tempo sozinho, a tão necessária hora de esvaziar a lixeira.
Rubens deixa Lola a ressonar no sofá, joga um pesado cobertor às costas, desarrolha uma nova garrafa de vinho e vai se sentar com ela nos degraus da varanda - sem taça, a tomará no gargalo -, de frente para a noite, para a neblina baixa a colocar a montanha em nubentes trajes, para o céu negro, sem Lua, com uma profusão de estrelas impossível de ser vislumbrada, sequer imaginada, em ambientes urbanos.
Parece a Rubens que há mesmo mais estrelas que céu e ele fica a procurar adjetivos que bem qualifiquem tal prodigalidade celeste. Repleto de estrelas? Fraquíssimo. Pleno? Piorou. Abarrotado? Ficou na mesma. Profícuo? Pedante e sem fazer jus ao que vê. Coalhado de estrelas? Já temos algo ligeiramente melhor - pensa Rubens, entornando no gargalo. Coagulado? Não. Talhado de estrelas? Ainda não é o que Rubens procura, mas se decide por ele. Talhado estava de bom tamanho. Toda a imensidão do Universo à sua frente - uma ínfima fração dela, na verdade; mas ainda assim atordoante - e ele a vasculhar as páginas de seu léxico mental à cata de palavras. Talhado estava ótimo, perder mais tempo nisso seria um desperdício.
O escuro no mato é escuro de fato, é denso, é piche e breu, não o escurinho do cinema que é a noite urbana. Rubens leva um tempo para se acostumar a ele, um tempo até se sentir confortável com a imersão abissal, com olhar à sua frente e só ver o escuro, um tempo para domar os ouvidos e acalmar os nervos, para que o menor som sem forma do ambiente - e para quem é do asfalto há milhares de ruídos desconhecidos na noite no campo - não lhe cause sobressaltos, cagaços.
E Rubens passa a se concentrar nas estrelas, tenta olhar para o mais fundo e longe que consegue. Há poucas estrelas mais próximas, se comparadas às mais longínquas. Quanto mais longe olha, mais e menores estrelas enxerga, a ponto de se tornarem nuvens de sóis e Rubens entende a exatidão inequívoca do termo nebulosa. Rubens desfoca sua visão, ou procura diferente foco para ela, como se o céu fosse uma daquelas imagens estereoscópicas para as quais se olha fixamente, com certo foco e determinada distância, e figuras tridimensionais saltam delas. E outra boa talagada no vinho.
Um porrilhão de estrelas - pensa Rubens -, cada uma com um tanto de planetas a orbitá-la. E a porra do ser humano e seu deusinho chinfrim  dizendo que não existe vida em outros planetas. Nunca olham para os céus, esses merdas? O difícil não é crer na existência de vida extraterrestre, o impossível de se crer é que não exista vida em outras esferas.
O escuro primordial, o berçário cósmico à sua frente, uma garrafa de um bom vinho ao seu lado. Às vezes, ele dá sorte, admite Rubens com seus botões. Mais um talagada e fim da garrafa. Mas o escuro ainda está lá, as estrelas ainda estão lá e Rubens ainda está ali. Levanta-se, busca outra garrafa e reassume sua posição nos degraus da varanda.
Rubens escuta, então, uns dez minutos depois de aberta a outra garrafa, ou muito bem poderia ter transcorrido toda uma era geológica, um barulho às suas costas, um trinco de porta sendo destravado. Lola. Possivelmente despertada por algum barulho feito por Rubens durante a incursão e captura da outra garrafa.
- Rubens - diz Lola -, ainda tomando vinho? Não vem deitar, não?
Rubens responde que já está terminando a garrafa e logo se juntará a ela na cama. Sem mais, Lola entra.
Puta que o pariu! - pensa Rubens. Dois universos expostos às vistas de Lola - o Cósmico e o íntimo e pessoal de Rubens - e só o que ela soube dizer foi se ele não ia se deitar? As entranhas de dois universos evisceradas à apreciação dela e a única preocupação de Lola foi se Rubens ainda estava a se embriagar?
Se Lola, pensa Rubens iniciando a nova garrafa, ao invés da quase bronca que lhe dera, tivesse se sentado ao seu lado nos degraus da escada, tomado junto com ele aquela e mais outra garrafa de vinho, ajudado-o em sua procura por adjetivos e em seus devaneios cosmoexistenciais, talvez o tivesse ganho e conquistado por completo - Rubens anda mesmo com pensamentos de aposentadoria.
Se Lola tivesse embarcado com ele em sua Jornada nas Estrelas, audaciosamente indo onde nenhuma outra amante de Rubens jamais esteve, provavelmente o teria ganho em definitivo. Mas Lola nem viu as estrelas, só soube perguntar se ele ainda estava entornando e se não ia se deitar.
Rubens contempla as estrelas por mais um tanto, acaba devagar com a garrafa e se decide por ir dormir. Dois universos se desvinculam. O universo particular de Rubens se despede do das estrelas. Rubens entra e se deita ao lado de Lola, encaixa-se a ela. O universo das estrelas fica lá fora, acordado e imutável, como se Rubens nunca houvesse pensado sobre ele; o universo de Rubens, idem, como se Lola nunca houvesse pisado por seus planetas desabitados.

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