A Origem do Azarão, para "J"

O bom e velho rum é elemento recorrente em meus contos e poemas, como também é recorrente os leitores do blog que não me conhecem pessoalmente perguntarem qual a minha relação com a bebida âmbar, com o maná das antilhas, com o néctar que beija-flor não beija. Qual a relevância, a influência, a inspiração, a medida do rum na vida do Azarão?, querem saber.
Pois, finalmente, a verdade que só os iniciados conhecem será revelada ao grande público. A origem do mito do Azarão será agora descortinada. Sim, o Azarão, como todo alter ego, como toda identidade secreta que se preze, tem uma origem acidental, conturbada e traumática, uma dessas brincadeiras que o Destino apronta para matar o tédio. Eis a gênese do Azarão.

Kal-El, retirante espacial, parido sob o rubro e sanguíneo sol de Krypton, quando exposto ao nosso amarelo, icterícico e anêmico astro-rei, paradoxalmente, tornou-se o Super-Homem, o invulnerável Homem de Aço; Peter Parker, CDF quatro-olhos, bombardeado pelas quelíceras de uma aranha de hiroshima, transformou-se no incrível Homem Aranha, forte, acrobático, o amigo da vizinhança; Robert Bruce Banner, cientista cinzento de porão, no clorofilado e vicejante Hulk se transfigurou ao ter suas células adubadas por raios gama; Steve Rogers, voluntário raquítico a serviço do Tio Sam, inoculado pelo supersoro e posto a fermentar em cultura de levedos de raios vita, cresceu feito massa de pão, reconfigurou-se no embandeirado Capitão América, o primeiro super-herói anabolizado das HQ.
Eu, portador da síndrome da timidez congênita, eremita de mim mesmo, cabação até a medula, entrei de gaiato num navio, num navio pirata, e, clandestino, fui posto a caminhar pela prancha, jogado a um encapelado e revolto mar de rum, a um oceano furioso de cuba libre. Contudo, o que era pra ter sido meu funeral, foi minha fênix; o que era pra ter sido meu esquife, nova placenta. Emergi, ainda que não soubesse à ocasião, transmudado no Azarão : foi só questão de tempo até perceber minhas novas habilidades, aprender a lidar com meus recém-adquiridos poderes e, como com grandes poderes vêm grandes responsabilidades, usá-los na cruzada mais justa e santa de todas, a conquista de bucetas, campanha de guerra impossível antes do rum. A cuba libre tornou-se a poção mágica do druida Panoramix, e eu, seu mais digno e dedicado Asterix.
Fui batizado e convertido ao rum em 1989, na cidade de Araraquara, durante uma semana de estadia na república de meu primo Leitinho, num evento interdimensional de proporções e desdobramentos cósmicos que ficou conhecido, pelos que dele participaram e sobreviveram, como As Guerras Secretas.
Era mês de junho, foi em uma semana de festividades e folguedos universitários - quando universitário tinha que fazer jus ao título, quando não havia facilitações para o incapaz ingressar nos quadros acadêmicos, Enem, Sisu, ProUni etc, quando se ouvia Ira!, Barão, Doors e Ramones nas festas e não o abjeto sertanejo -, e eu, de saco cheio do trabalho e do próprio curso superior que também cursava, chutei o balde e para lá me dirigi em temporário autoexílio, na boa e canalha companhia dos amigos Marcellão e César.
Então, a semana chegou ao seu ponto culminante - creio que era uma quinta-feira -, era o tão esperado dia da Festa na Bat-caverna, no D.A. da Farmácia. Antes de prosseguir, devo registrar que 1989 foi um ano atípico e memorável, foi o cinquentenário do Batman, o morcegão estava em evidência, Tim Burton lançou Batman, o filme que devolveu o personagem ao rol dos heróis sérios - feito que, nos quadrinhos, Frank Miller havia realizado dois anos antes -, várias foram as minisséries e graphic novels comemorativas lançadas pela editora Abril, 1989 foi o ano chinês do morcego; e foi sob os auspícios do signo do morcego que eu ganhei meu duplo, meu Mr. Hyde, meu totem, o Azarão.
Voltando : foi quando, no pré-aquecimento para a Festa na Bat-caverna - a canalhada toda reunida na república do Leitinho -, alguém apareceu com uma PET de dois litros de Coca-Cola e um litro de rum Montilla, com um sorridente pirata estampado no rótulo.
Até então, eu já com 22 anos de idade, nunca pusera solitária gota de álcool na boca, nem mesmo a rasa taça de Cidra Cereser permitida nas festas de fim de ano da família.
Não me lembro de quem me deu a primeira dose da alquímica e transmutadora mistura, mas gostei e fui entornando como se ali só refrigerante houvesse - desconhecia as vantagens e os reveses da cuba libre, sua benção e sua maldição. Depois de sei lá quantas doses, comecei a sentir o formigamento, o anestesiamento da face e dos membros, uma leveza inédita, uma força sem precedentes a me correr pelas veias. E fui entornando.
Sem anticorpos nem ao menos enzimas contra o álcool, despenquei sem aviso, de um momento para o outro, de uma asséptica estratosfera ao esgoto mais infecto. Em um infinitesimal átimo, do Olimpo ao Hades. Comecei a dar trabalho. A vomitar e vomitar. A golfar feito a menina do Exorcista, a não mais conseguir me manter de pé. E a hora da Festa na Bat-caverna chegando.
Meu amigo Marcellão, o único abstêmio do lugar, levou-me para o chuveiro, vomitei no chão do box, pela boca e nariz, um grão de feijão entalou em minha narina esquerda; ele, estoicamente, limpou tudo, pôs-me sob a supostamente revigorante água fria - não me revigorou em nada.
Decretaram, então, que eu estava imprestável, totalmente incapacitado para a Festa na Bat-caverna (e eu estava mesmo, apesar de me sentir o dono do mundo), decidiram que eu só ia dar trabalho, causar transtornos e, portanto, que eu iria ficar em casa.
Após o banho, jogaram-me em uma das camas da república; eu, desfalecido, só de cueca e a perceber nitidamente o movimento de rotação do planeta, e como girava o filho da puta. Resolveram me deixar para trás, amigo caído em campo de batalha, trancado na república. Lembro deles saindo pela porta da sala, trancando-a e eu incapaz de segui-los, tentando decidir o que era chão e o que era teto.
E só me lembro dos acontecimentos até esse ponto da história. Tudo o que vem a seguir é baseado em relatos de outros, do que me contaram no dia seguinte.
Ocorreu que, não obstante mente e memória estarem tombadas ao poder do rum, o meu corpo, jovem e viril, catapultou-se em arco reflexo da cama, não jogou a toalha no ringue da embriaguez, um pugilista nocauteado em pé que continua a procurar pelo queixo ou pelo fígado do adversário.
Conta meu amigo Marcellão, para quem quiser ouvir, e também para quem não quiser, aliás, conta para todos que tiver oportunidade, que assim que percebi que fora abandonado ao leito, talvez o de minha morte, levantei-me e tentei alcançar meus carcereiros, mas era tarde, a porta já estava trancada e eles todos, fora da casa, à calçada. Conta que eu, então, escancarei a grande janela da sala, que dava para a rua, agarrei-me e subi em suas grades e, só de cueca, comecei a tentar arrancá-las, a chacoalhá-las. E a gritar e esbravejar : - eu quero comer um cu! eu quero comer um cu! eu quero comer um cu!
E continuo querendo até hoje.
O Azarão havia se instalado. Definitivamente.
O resto, é história. São histórias.

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26 Comentários

  1. Curiosa essa sua história! Quando eu estava com uns dezoito anos, fui a uma festa no domingo à noite com bebidas "0800". Dentre elas, rum. Bebi tanto e tão descontroladamente que em determinado momento já não sentia mais o gosto do rum descendo pela garganta. Chegar em casa foi um parto. Entrei no banheiro tão silenciosamente quanto uma aranha se movendo. Meu irmão, que tinha prova no dia seguinte, disse que parecia mais um bando de elefantes em fuga. A porta teve que ser arrombada para que eu fosse retirado de lá, desmaiado, literalmente à beira de um coma alcoólico. Foi a partir desse dia que eu comecei a parar de beber. Após um ano sem beber nada, nem mesmo o licor de um bombom de licor, o ato de "chapar o melão" perdeu a graça. A última cerveja que tomei foi antes do Natal de 2013. E rum, nunca mais.

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    1. Pois é, caro Jotabê, o poder do rum deve ser respeitado. É bebida de pirata, de bucaneiros, de homens duros e rudes e não para jovens imberbes e desavisados. Pagamos o preço.

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  2. Vc devia ver a minha cara se iluminar ao ler esse texto. Obrigada! Com absoluta certeza abrilhantou o meu sábado e entreteve a minha canibalesca curiosidade. (risos) Bom saber um pouco da origem do homem por trás da pena. Eu poderia contar algumasss histórias parecidas, das quais não me orgulho rsrs, por isso me sensibilizo. Então, a cuba libre e o rum têm realmente outra conotaçao, hum?!? (risos) Outra vez saiba que fiquei tocada.
    PS: Por que Azarão???
    "J"

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  3. Fiz meu dever de casa e numa rapida pesquisa vi que em algumas culturas os morcegos são considerados um símbolo de morte e azar. Não fazia nm ideia disso... :o Que bom q a única tatuagem q possuo é uma borboleta comum e sem graça. Brincadeiras a parte, independente do motivo, eu adoro seu pseudônimo acho um tanto inspirador. Só pra vc saber na época da sua festinha eu só tinha um ano de idade.
    "J"

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    1. 26 aninhos... nem me lembro de quando tinha essa idade.

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    2. 26 e 1/2 tá, (risos)
      "J"

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    3. É, cara "J", seus comentários estão incendiando a imaginação da velharada que lê o Marreta, assoprando velhas brasas. Leia o comentário de um anônimo a respeito das "J" e das louras serem um perigo.
      Acho que tem velho babão por aí entrando no blog só para ler seus comentários. O que acha de uma seção só sua por aqui, um espaço para publicar textos seus?

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    4. Fiquei surpresa com tanta repercussão, lisonjeada com certeza, porém tenho q previni-los q a minha pessoa n é digna de tanto interesse. Sou extremamente comum, pragmática de péssimos hábitos e calígrafa de letra ruim. Tenho como costume escrever ensaios e crônicas, mas como vc meu amigo Azarão, cultivo a minha própria timidez. Fiquei encantada com o seu convite. Mais uma vez obrigada. Espero continuar colaborando com a imaginação dos seus leitores, a vida é sempre mais interessante do ponto de vista da mente. Como sempre é um prazer desfrutar da sua companhia.
      PS: Caro anônimo, as "J" são sempre morenas.
      "J"

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  4. Mestre Azarão...mas que vontade de comer um cu...af! Na época precisou de uma cubinha para destravar, mas garanto que hoje em dia vai a seco mesmo. Aliás, você bem sabe que eu adoro me abrir com você. Apesar de estar casado e ter prometido ao meu pastor que virei a chavinha, no carnaval eu e a patroa nos liberamos para fazer o que bem entendermos. Aí, neste último eu fui para Caldas Novas sozinho, e dei mesmo! Vou te contar detalhes. No começo, doi um pouco sim, mas depois não sinto mais nada. O bofe pode ficar em cima de mim uma hora se quiser que eu garanto: é só prazer. Agora, o duro é no outro dia, aquela porra vai saindo e escorrendo por entre as pernas, vai sentindo um friozinho. Mas até disso eu gosto. Ex-baitola.

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    1. Rapaz, não tem essa de se abrir comigo, não. Cu é bom, sim, mas se for de mulher, nada de um saco balançando embaixo.
      Só no carnaval? Eu truco!!! Você deve é dar todo dia. Tenho certeza de que até o seu pastor lhe passa a vara. Você chega pro pastor e diz : "ai, pastor, não vou ter o dinheiro do dízimo nesse mês..." E aí paga em cu.

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  5. Azarão, meu velho, que delícia de texto! Como fico feliz ao lembrar daqueles tempos em que éramos super-heróis. Hoje, com os poderes limitados, nos viramos na medida do impossível, né? Vou deixar a minha provocação: está mais para "J" ou para o ex-baitola? Abs.

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    1. Rapaz, hoje eu estou mais para sossego, não quero enrosco na minha vida.
      Abraços.
      E aquela gelada?

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  6. Ah...tomei a liberdade de publicar parte do texto no QUIMICAMIX. Abs.

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  7. Marreta,
    Longe de mim querer roubar suas leitoras (até porque não tenho um blog), mas ler o comentário de "J" incendiou minha imaginação e revolveu minhas lembranças, mostrando que ainda há combustão por baixo das cinzas superficiais. Porque as "J" e as louras são um perigo. E se essas características juntarem-se na mesma pessoa, aí a fissão nuclear é garantida. Por isso, fica aqui uma sugestão para a sua seção "Que fossa, hem, meu chapa...": a música "Uma Loura" cantada por uma das vozes mais incríveis do Brasil, que foi Dick Farney.

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  8. "J" e Azarão,
    A "baba" surgiu porque houve em outro tempo (não tão distante) e em outro lugar uma outra "J", que era loura. E as cinzas pertencem a ela. E não faço parte da velharada, pois tenho 36.

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    1. Está aí, balzaquiano anônimo, publicado seu direito de resposta. 36 anos e conhece Dick Farney? Mui estranho? És quem eu penso?

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  9. Caro anônimo, que bom q houve outrora uma "J" no seu caminho e ainda com o bônus do cupom dourado. Fico feliz de despertar qlqr lembrança dessa época boa, mesmo sem querer. Parafraseando o poeta recordar é viver. A título de conhecimento comum, o direito de resposta é garantia constitucional vedada ao anonimato. Desta feita, saiba q " estamos aqui para agradar".
    XO - abraço e bjo
    "J"

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    1. Xiiii! Isso aqui tá virando consultório sentimental. Daqui a pouco o blog vai virar agência de casamentos!!!!

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    2. Então antes q o amor acabe...
      bye
      "J"

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    3. * Excluir
      É a influência da minha natureza feminina. Mar revolto. (risos) Brincadeira. Dia difícil no trabalho, exercício de paciência, tolerância esgotada. Acabei por escrever um texto essa semana, não é grande coisa, mas se quiser ler??? preciso sabr como te envio?
      * excluir
      "J"

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    4. olha, como eu não tenho facebook, whatsapp etc, acho que existem duas maneiras, ou por e-mail, você manda um e-mail seu, eu, claro, não o publico, entro em contato e você me envia, ou você pode mandar o texto através dos comentários. Sei que existe um limite de caracteres para cada comentário, mas você pode separar o texto em algumas partes e mandá-lo esquartejado mesmo, que depois eu costuro ele de novo.

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  10. Ah! Esqueci de te dizer q me contaram q vc não gosta de fotos, assim como eu...mas, insisti tanto, q me mostraram uma foto sua.....vc está mto bem na foto......deveria se expor mais!!

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    1. O Leitinho é foda...
      Deve ser uma foto antiga para eu estar bem, hoje estou um caco.

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  11. Azarão, vc é uma piada! Uma vez, fiquei curiosa...queria saber o q seriam as guerras secretas..aí me contaram..rsrsrs Eu conheci o álcool e seus efeitos um pouco antes de vc...rsrsrs!! Acho que aos 16 anos...precoce, né? Em outro blog, q tb contou essa história, ficou faltando a melhor parte...o final! Rsrsrsr Vc não especificou o sexo do cu q queria comer em seu texto..aí vc deixou dúvidas, que deram asas à imaginação fértil!!Rsrsrs Fazia um tempão, q eu não acessava o seu blog, mas adoro seu jeito irreverente! Vc e suas histórias, sempre tão interessantes e divertidas....às vezes, acho q vc retrata de uma maneira irônica coisas pessoais, q realmente aconteceram c vc....eu adoro seu senso de humor! Ah..também gosto de algumas fotos q vc posta...sempre mto interessantes...rsrsrs. Saiba q me tornei sua fã, mesmo tendo conhecido vc há mto tempo atrás! Se quiser publicar, OK...só não inclua meu nome, por favor

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    1. Pedido atendido.
      Fiquei mesmo sabendo que você se anima com algumas fotos que eu posto aqui.
      É bom ter você comentando de novo por aqui.
      abraço

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