Bêbado Autossustentável

A ideia já deve ter passado pelas cabeças de todos os amantes de birita. Nem que tenha sido uma única vez, nem que tenha sido em um daqueles momentos de, digamos assim, elevada graduação etílica, todo manguaceiro já pensou e desejou ter a sua própria fabriqueta de mé.
Uma pequena destilaria no fundo do quintal, uma cervejaria na garagem, uma vinícola naquele galpão ou despensa abandonados.
Mas vai daí que não é prática das mais fáceis pôr isso em prática. O pé de cana precisaria munir-se de uma sorte de equipamentos especiais, ter conhecimentos mínimos do processo de fermentação, dos procedimentos de controle de qualidade, selecionar os insumos mais adequados, gastar dias no processo e ainda contar com a possibilidade de um produto de baixa qualidade. É muito mais fácil e garantido continuar pegando umas latinhas no supermercado.
E se o próprio organismo fabricasse a birita nossa de cada dia? Isso mesmo. Iríamos comendo a matéria-prima - grãos de cevada, milho, trigo, arroz, à preferência do freguês - e o corpo cuidaria do resto, faria a fermentação, produziria o álcool e eliminaria os resíduos : um bêbado capaz de produzir seu próprio alimento, um cachaceiro autotrófico, fotossintetizante. Uma inusitada e muito bem-vinda fotossíntese.
Confesso que nem mesmo em minhas elocubrações mais alcoólicas supus tal possibilidade, jamais sequer concebi o conceito do bêbado autossustentável, espécime que, sem dúvida, representaria o próximo degrau evolutivo da espécie humana, o Homo bebuns. A taxonomia teria que estabelecer mais um reino natural, só para ele.
Acontece que ele existe! O Homo bebuns existe! Perto dele, ter garras de metal, asas, lançar lasers pelos olhos, teleportar-se, respirar debaixo d´água, ter poderes telepáticos e telecinéticos, são adaptações menores, desprezíveis.
O Homo bebuns existe, tem 61 anos e é morador da pequena cidade de Carthage, Texas (EUA). Ele foi descoberto ao ser levado por amigos a um pronto-socorro da cidade, onde deu entrada com fortes sinais de embriaguez e imediatamente submetido às terapêuticas próprias para o seu quadro.
Porém, nos raros momentos de lucidez, o paciente insistia em afirmar não ter ingerido única gota de bebida alcoólica, garantia que tinha ficado de pileque após comer uma lauta refeição. Só comer, sem beber nada além de água.
Os médicos e enfermeiros não lhe deram ouvidos, era só mais uma história de bêbado, igual a tantas outras que eles já tinham ouvido. "Prova" disso era a concentração de álcool no sangue do paciente : cinco vezes acima do limite permitido pelo estado do Texas. Caso tivesse assoprado em um, ele teria deixado até o bafômetro bêbado.
Contudo, um médico mais curioso, desses que põem a ciência sempre adiante, um dr. House lá deles, resolveu investigar a história do bêbado. Deixou-o isolado em um quarto e o manteve alimentado à base de uma dieta rica em carboidratos. Exames sanguíneos subsequentes foram realizados, vários deles, e o resultado foi sempre o mesmo : forte embriaguez.
Depois de dias no hospital, isolado e vigiado, apenas comendo, como era possível o paciente ainda tomar os seus porres?
Uma amostra de seu conteúdo estomacal foi analisada e revelou a presença do fungo Saccharomyces cerevisiae, o bom e velho Saccharomyces, o fungo nosso de cada dia, a levedura utilizada na fermentação de pães e massas em geral e, claro, também na da cerveja e na do vinho. É o chamado fermento biológico, aquele granulado meio pardacento que a gente compra nas padarias.
Desvendado o mistério : quando o Homo bebuns come alimentos com muita concentração de amido, ele fornece um banquete para o Saccharomyces cerevisiae. 
O fungo come a se fartar, enche o pandu de amido e glicose, e, em seguida, desconhecedor de qualquer regra de higiene ou de etiqueta, põe-se a cagar no prato em que comeu. 
O prato, no caso, é o estômago do Homo bebuns, e os dejetos do fungo, o gás carbônico e o álcool etílico. Dali mesmo, o álcool já é absorvido, cai na circulação e vai fazer a alegria do cérebro.
O Saccharomyces cerevisiae recebe proteção e alimento do Homo bebuns, em troca, dá-lhe doses instantâneas de prazer e alegria. Pãããããta que o pariu!!!! Isso sim é que é simbiose!!!! O resto é resto, é simples namorico entre duas espécies, um flerte à toa, no máximo, um juntar de trapos, um amancebamento, um concubinato.
A presença do Saccharomyces cerevisiae pode ser explicada pelo contato frequente do texano com o fungo, pois ele exerce a profissão de cervejeiro artesanal, mas a permanência e a boa adaptação ainda não foram bem elucidadas pelos médicos. As condições estomacais, sobretudo o forte pH ácido, em torno de 2, não são nada propícias para o fungo ali fixar residência; além disso, as bactérias naturais ao estômago, muito melhor adaptadas ao ambiente, os eliminariam na competição por alimento e território.
Tanto que há uns outros poucos casos assemelhados registrados na literatura médica, casos de pessoas submetidas a tratamentos prolongados por antibióticos que, ao eliminarem as bactérias estomacais, abriram espaço para o fungo cervejeiro. Casos similares quanto à natureza, mas muito inferiores ao do Homo bebuns do Texas quanto às suas intensidades, quanto às quantidades de álcool produzidas.
Será o Homo bebuns um mutante com condições estomacais favoráveis ao fungo, ou os fungos é que são parte de uma cepa mutante capaz de sobreviver em condições adversas para os outros de sua espécie?
O fato é que o Homo bebuns  tem uma cervejaria íntima e pessoal!
Percebem a praticidade dessa evolução no cotidiano? 
O cara, pela manhã, antes de ir ao trabalho, passa na padaria - que já foi do português, hoje é do chinês, do coreano - e pede a clássica média com um pão com manteiga. Come e vai para o trabalho. No caminho, o fungo vai processando o pão e o açúcar da  média, o cara chega ao trabalho com esfuziante alegria, com uma disposição incomum. E o melhor : de origem insuspeitada.
Outra : almoço de domingão na casa da sogra. O cara come uma bela pratada de macarronada, dá um tempinho pro fungo agir e logo sai dando abraços e beijinhos na jararaca.
Mais uma : aniversário de crente evangélico (acreditem, uma vez eu já entrei numa barca furada dessa), nenhuma reles long neck quente à vista. Acham que o Homo bebuns se aperta? De jeito nenhum. Ele come umas duas esfihas, uns três pastéis, mais uns tantos risolis e capricha nos brigadeiros. Daí a pouco, estará até fazendo coro no parabéns a você, cantando derrama, Senhor, derrama, derrama sobre ele o seu amor, junto com a crentaiada do rabo quente.
Fico me imaginando um portador desse poder, dessa mutação. Hoje, quero tomar uma cerveja, e como um punhado bem mastigado de grãos de cevada; hoje, um vinho tinto, e chupo um grande cacho de uvas pinot noir; hoje, um saquê, e um punhado de arroz goela abaixo. Que mão na roda seria!
Paciência... Não são todos os que nascem sob os auspícios de São Darwin.

*O caso foi recentemente publicado na revista International Journal of Clinical Medicine.

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