The Spider Está Morto, Viva Anderson Silva

Vi e revi, por umas quatro ou cinco vezes, a última luta de Anderson Silva, ocorrida no sábado passado (06/07) e em cujos 78 segundos do segundo round, o campeão caiu, foi nocauteado. 
Caiu pelas mãos de Chis Weidman, um lutador pouco cotado para derrotar um campeão invicto há 7 anos e que já havia defendido com êxito o cinturão dos pesos-médios em 10 ocasiões, um azarão dos ringues - os azarões são os seres mais perigosos do planeta, por imprevisíveis, por não serem confiáveis, por subestimados.
Uma derrota (ou uma vitória, depende do prisma) atípica.
Muito mais atípico, porém, que a inesperada derrota, foi o comportamento de Anderson Silva durante o combate, desde o início da contenda.
Ele nem parecia um lutador, de técnica e disciplina tão elogiadas, prestes a defender novamente o cinturão de sua categoria. Nada de cenho franzido, nada de caretas para o adversário, nada de maxilares constritos, nada de músculos retesados e peito estufado feito um baiacu, que se infla para parecer maior e mais ameaçador ao seu oponente.
Pelo contrário. Anderson estava sorridente, relaxado, bailou pelo ringue com a alegria de um dançarino de frevo ou de maracatu, ou impávido como Muhammad Ali, como diria Caetano, ou como quiseram alguns comentaristas, que relacionaram a ginga de Anderson à do nascido Cassius Marcellus Clay Jr. 
Discordo. Cassius Clay provocava, espezinhava, queria humilhar seus rivais, diziam que ele voava como uma borboleta e ferroava como uma abelha. 
Anderson não quis ferroar ninguém, não provocou, não desrespeitou, não fez pouco de seu adversário, só brincou com ele, até beijou o sujeito. Uma alegria que só os que são muito seguros de si e do que estão fazendo são capazes de demonstrar. Anderson só queria voar.
Uma alegria de quem jamais poderia antever o desfecho da luta, a derrota? Uma alegria de quem, ciente de sua explícita superioridade, tinha a certeza de mais uma vitória? Não e não! De novo, o oposto.
Anderson estava alegre, não como quem estivesse a defender um título, uma aparência; mas alegre como quem estivesse a se desvencilhar dele.
Uma alegria que poucos experimentam em suas vidas, uma alegria a que poucos se dão a coragem de experimentar : a da queda.
Ele estava alegre, dançava de contentamento, um verdadeiro moleque, justamente porque já antevia a derrota, planejou-a, flertou propositalmente com ela. Não cabia em si de contentamento porque, mesmo não tendo dúvidas de sua superioridade, sabia que ia perder, dispôs-se a isso.
Há algum tempo que Anderson Silva manifesta o desejo de se aposentar dos ringues - acho que ele tem vistas ao cinema, ou coisa assim. Mas um campeão não se aposenta fácil, não lhe basta querer. Obrigações contratuais têm de ser cumpridas, o público tem de ser saciado. Os empresários e os fãs têm sede do sangue do campeão, não o deixam ir tão fácil, querem vê-lo lutar. Lutar, lutar e lutar. Todos os fracos e covardes incapazes de lutar querem o sangue, o suor e alma do campeão. Enquanto ele for campeão.
Como se livrar de tudo isso? Do vampirismo/canibalismo dos fracos? Óbvio : deixar de ser campeão, tornar-se desinteressante à antropofagia. Em outras palavras : perder, deixar-se derrotar, simular fraqueza.
A alegria de Anderson era a de quem planeja a própria derrota, o próprio descanso, de quem escolhe as flores para o próprio funeral.
A insustentável leveza do bailarino de luvas era a de quem sabe que está prestes a se livrar de grande peso, uma leveza antecipada.
A alegria esfuziante de Anderson era a de um funcionário público à véspera da aposentadoria, em seu último dia de expediente, o último dia de anos e mais anos de enfadonho e burocrático trabalho - sim, não se enganem, todo trabalho, não importa de que natureza, com o tempo, acaba por se tornar enfadonho e burocrático, até mesmo amassar narizes, romper supercílios e esmigalhar maxilares.
Anderson estava alegre porque, através de sua derrota, estava prestes a obter sua maior vitória : sua liberdade.
Para um campeão, para um número um, nada liberta mais que a derrota.
A derrota planejada do campeão é uma vitória sobre si mesmo, sobre a sua vaidade. Para o campeão, vencer é um ciclo vicioso, uma espécie de transtorno obsessivo compulsivo. Ele vence, vence, vence... e tem que estar sempre a vencer. É enlouquecedor.
Romper com esse ciclo, dar um basta à obsessão, não é trabalho de Hércules dos mais simples : é coisa mesmo de campeões. Dos verdadeiros. Dos que percebem que devem deixar de ser campeões enquanto é tempo, para não serem consumidos por seus mitos até que não lhes reste mais que pele e ossos.
Dar as costas ao pódio, ao panteão, é mesmo coisa dos verdadeiros campeões. 
Dos poucos que alcançam a serenidade de olhar quem os derrotou e saber que poderiam tê-los massacrado, mas não quiseram, não lhes era importante. A serenidade de quem não precisa massacrar ninguém para se afirmar, a serenidade de quem é o seu próprio alicerce, de quem se constrói fundado em suas qualidades, e não sobre os defeitos e os ossos de outros.
Dos raros que alcançam, principalmente, a serenidade de conviver com os olhares acusadores - muitas vezes, jocosos - da opinião alheia.
A máxima vitória do campeão que se deixa abater é essa : não se importar com a opinião dos outros, dos que lhe são estranhos, não precisar dos holofotes para construir sua autoimagem e manter brilhante o seu lume, é conservar a própria luz sem precisar que outros fiquem lhe pondo pilha.
Para Chris Weidman, e para todos os que assistiram ao combate, foi mais uma luta, mais uma demonstração de som e fúria.
Para Anderson, foi um casulo. Do qual ele saiu metamorfoseado em algo muito superior. O mito entrou no casulo, emergiu dele o homem. Entrou The Spider, eclodiu Anderson Silva.
Não foi Weidman quem derrotou o imbatível Spider, Weidman foi só o avatar, o vetor. Anderson Silva derrotou The Spider! Anderson migrou de corpo, incorporou em Weidman e nocauteou The Spider. Ou nem se deu ao trabalho, apenas saiu de Spider e ficou assistindo a ele beijar a lona. O mito não aguenta mais que alguns instantes sem o homem. É um idiota quem acha que o mito sustenta o homem.
O verdadeiro homem é aquele que desconstrói seu próprio mito, aquele que o esquarteja, e o oferta como última refeição aos urubus de plantão.
Não é o super-homem quem suplanta o homem. O verdadeiro homem é quem suplanta o super-homem, o Übermensch, o além-do-homem, é quem desfaz a própria farsa e, além do além-do-homem, reencontra e redescobre o homem.
Anderson Silva, ao se deixar nocautear por um inferior, superou-se, foi além do além-do-homem em que havia se tornado. Reencontrou, feliz, o homem. Tanto que nem pensa em revanche, muito menos em revanchismo.
Morreu Spider, Viva Anderson Silva!!!
Morreu o mito - mais um, igual a todos os outros -, viva o homem, único, singular e intransferível!
Parabéns pela gloriosa carreira de vitórias, Spider!
Parabéns pela fragorosa derrota, Anderson Silva!

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16 Comentários

  1. Parabéns por mais um excelente texto Marreta!

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    1. Obrigado, e aproveito para agradecer também à dica da Angelina Jolie na Globo, no domingo. Infelizmente, quando li seu comentario já se fazia noite, mas valeu.
      Abraços.

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    2. Realmente, morreu um campeão e nasceu um derrotado. Nada justifica jogar toda a carreira fora brincando, subestimando o adversário e como um fracassado, preferia eu ter perdido guerreando. Imagino a derrota dele lutando até o fim, podendo até ser locauteado, mas de forma brava, não tenho dúvidas que seria aplaudido em pé e sairia em glórias pela sua trajetória, contudo, sair como fez não tem mais como reparar, principalmente porque agora uma nova derrota teria um peso ainda maior e ele sabe disso, perder a próxima luta mata o grande exemplo que muitos brasileiros tinham em mente. Errou na estratégia, poderia terminar como Pelé, Zico e vários que concluíram a carreira de forma brilhante...envelhecemos, é verdade, mas nunca perderemos o que fomos ao longo da vida, ele arriscou, lamentável escolha!!!

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    3. Você só errou em um dos exemplos que citou, o Pelé. O Pelé, um cara honrado? Dê uma pesquisada por aí para ver como ele chegou a ser esse canalhocrata que é hoje.

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  2. Clap! Clap! Clap! Faço das suas as minhas!

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  3. Bravo! Assisti a luta e realmente fiquei revoltado com o comportamento do Anderson, e com a falta de respeito com o público que investiu seu tempo e dinheiro para acompanhar seu apogeu. Mas acompanho o Anderson e suas atitudes a algum tempo e por isso ficou aquele gostinho de "isso deve ter um bom motivo". Essa sua visão, sempre preocupada em entender o íntimo do outro e suas intenções/aflições, me ajuda a entender um pouco do que vi. Talvez a grande vítima, que é o público brasileiro, seja ao mesmo o grande vilão, por dar tamanha importância a um esporte, que não deveria passar de um entretenimento. Fazemos a mesma coisa com outros esportes, diga-se futebol, e alguns fazem dele uma coisa mais importante que as pessoas. Isso por vezes causa conflitos, inimizades e violência. Se foi realmente essa a intenção do Anderson, de se livrar desse carma de campeão invencível, merece mais uma vez meus parabéns.

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    1. Realmente, eu acredito que essa tenha sido a intenção de Anderson Silva, veja essa reportagem que saiu ontem, no Terra Esportes:
      http://esportes.terra.com.br/lutas/mma/anderson-silva-descarta-revanche-e-diz-que-nao-luta-mais-pelo-cinturao,df2f09ecd67bf310VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html

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    2. Eu não gosto muito desse esporte e não costumo acompanhar, exceto as lutas do Spider. Comecei a me interessar após virar fã do Anderson Silva. Quando estava assistindo a luta senti um mix de sentimentos. "Poxa, vida ele não pode fazer isso com seus fãs. Ele não está lutando. Que arrogância é essa?" Quando a luta terminou eu comecei a digerir o ocorrido. Por trás daquelas atitudes tinha algo mais. Não haveria uma transformação tão grande dele sem motivos. Assim que li seu texto, me emocionei. Poucas pessoas foram tão sensíveis a ponto de conseguirem enxergar o Verdadeiro Campeão. Parabéns pelo texto! Espero que ele não ceda a pressão dos empresários.

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    3. Obrigado, Danielle. Eu também espero que ele não ceda, mas acho difícil, empresários de luta são uma máfia, Anderson pode até correr risco de morte se não ceder, são muitos milhões envolvidos.
      Hoje mesmo o chefão do UFC, Dana White, já decretou a revanche à revelia de Anderson e está indo conversar com ele, para "convencê-lo".
      abraço.

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  4. Parabéns pelo artigo. Seu ponto de vista é muito coerente com a realidade do que o cara vivia, dos seus motivos, faz todo sentido e concordo com vc.

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  5. Nunca tinha lido nada de seu blog e foi levado a ele por um comentário no Estadão. Parabéns pelo texto, excelente abordagem!! Já adicionei aos favoritos no meu computador!!

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  6. Ótima linha de raciocínio! Ótima sensibilidade! Ainda que esta não tenha sido a intenção de Anderson Silva, vale a leitura! Parabéns.

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  7. Não concordo! Anderson Silva tem muito que aprender com o Fedor ! Ele sim é o melhor lutador de todos os tempos. Quando perdeu, perdeu lutando, e não por palhaçada.

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  8. Esse discurso do spider de que cansou (de ser o invencivel, o campeao, de ter peso nas costas, quiça tbm da fama global e projac-al que ganhou), esse discurso de ator de novela, de que eh dura a vida de lutar a cada 8 meses e faturar milhoes por ano com isso, sinceramente, para mim nao colou. Ze Aldo nao faria uma asneira dessas. Esse sim eh honrado campeao.

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  9. muito interessante esse olhar de outro ângulo, realmente ele estava em modo kamikaze. é possível que estivesse querendo evitar um confronto com Jon Jones.

    Agora, o Weidman não era "azarão", na verdade era o mais bem cotado dos oponentes recentes de Anderson Silva. e desconfio que você está inventando sobre o "risco de morte", há algum fato sobre isso?

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  10. Parabéns, você tem razão. As vezes quando se ganha se perde ...

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