Dois Transplantes de Fígado Abaixo

Clássicos são clássicos. Humphrey Bogart é um deles. Mas, desgraçadamente, mesmo os clássicos estão sujeitos à ferrugem e às traças do tempo, precisam, às vezes, sofrer uma atualização em certos aspectos.
(Aliás, eu próprio talvez precisasse ser atualizado, quando uso o termo atualização; atualização, hoje, diz-se upgrade, mas fico com atualização até o fim, não enviadei tanto assim)
Humphrey Bogart, emblema do cinema noir, era, feito os personagens que interpretou, homem de punhos rápidos e demolidores. Assim eram também (talvez até mais) as suas palavras, seus sarcasmo e mordacidade materializados em mais puro granito, suas curtas e ásperas frases de efeito desferidas em jabs e uppercuts contra seu interlocutor.
A dureza, a rapidez e a precisão de suas frases eram um alerta, um primeiro aviso à eficiência de seus punhos, que logo poriam o sujeito à lona, caso ele não entendesse o recado e se metesse à besta.
E eram dois ou três golpes, no máximo. Serviço rápido e limpo. Nada de sangue esguichando ou miolos a escorrer do crânio esfacelado. Nada de raiva contra seu oponente. Nada pessoal.
Os inimigos de Bogart não eram seu inimigos. Eram simples entraves burocráticos de seu serviço, os nocauteava como quem carimba e despacha documentos em um cartório ou repartição pública : profissionalmente, imparcial, sem nenhum ódio, vingança ou paixão.
O mundo em que Bogart vivia não era noir, não era cinza : Bogart era noir, Bogart era cinza. Que é a cor do enfado, do distanciamento, também da altivez e da elegância.
Se o cinema noir nos chega em tons de cinza, é porque a câmara que o filmava eram os olhos de Bogart, os olhos de Bogart eram lentes sem recursos de technicolor. Bogart tornava cinza o mundo em seu derredor, e às pessoas de suas frias relações. Era um midas do chumbo, da densidade.
O enfado e o desdém que Bogart tinha pelo mundo não era arrogância nem prepotência de quem possa se julgar superior ao que o cerca - fosse superior, não estaria cercado por ele. 
Bogart não considerava que fosse melhor que o mundo - nem lhe interessava ser -, ou que o mundo fosse pior que ele - pouco se lhe dava se fosse -, que não o merecesse : Bogart nem considerava o mundo.
Sabia, sentia simplesmente, que não estava em sincronia com o mundo, que coexistia, mas não era tautocrônico a ele, que atuavam em frequências diferentes, dissonantes, ele e o mundo.
Sentimento traduzido em sua imortal e mais conhecida frase : "A humanidade está sempre duas doses abaixo".
Tomar duas generosas doses de whisky logo ao acordar, antes de se pôr a rua, era o sintonizador de Bogart, o seu dial de frequência, que o ajustava minimamente ao mundo, para que pudesse transitar por ele sem grandes exasperações.
Duas doses de forte bourbon punham a ágil mente de Bogart no mesmo estado de torpor e embotamento que o mundo circundante, tornava mais suportável a ele acompanhar o ritmo débil da humanidade.
Duas doses... Bons tempos, amigo Bogart.
Se elas ainda funcionassem, garanto-lhe, meu confrade no cinza, eu as tomaria também pela manhã. Nem me pesariam tanto ao orçamento, uma vez que, para meu café da manhã, não gasto na padaria, uma vez que, para ir ao trabalho, não gasto com gasolina ou tranporte público. E caso o álcool me soltasse a bexiga ao meio de meu caminho ao trabalho, facilmente poderia aliviá-la em algum terreno baldio, atrás de uma frondosa árvore, de uma caçamba de lixo, ou mesmo em algum canto da fachada de um estabelecimento comercial ainda fechado, uma vez que ainda se faz um confortável escuro quando ponho pé à rua.
Duas doses, três, até quatro, eu tomaria, amigo Bogart. Se elas surtissem efeito. Hoje, contudo, são inócuas em tais quantidades. E é aí que sua clássica frase precisa ser atualizada.
O mundo, hoje, é verdade, Bogart, está muito mais rápido; as pessoas, porém, acredite você ou não, estão muito mais lentas. Sim, praticamente uns autômatos, uns zumbis tecnológicos.
Permita-me, amigo Bogart, não é uma correção à sua frase, é tão somente um necessário e infeliz ajuste : "A humanidade está sempre dois transplantes de fígado abaixo".
Ok, Bogart, peça a Sam para tocar novamente, em memória aos velhos tempos. Play it again, Sam.
You must remember this
A kiss is just a kiss,
a sigh is just a sigh.
The fundamental things apply
As time goes by.
” 

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