O Rato Que Tem Medo

Quando de meus bons tempos de escola - e digo como aluno, obviamente -, não havia a esdrúxula e inútil figura do coordenador pedagógico.
As escolas eram regidas, e muito bem regidas, pelos diretores - bons diretores -, pelos inspetores - bons inspetores - e pelos professores - bons professores em sua maioria, outros nem tanto, mas todos muito bem pagos, o que logo de cara já lhes conferia o respeito da população, que, inculta, só respeita quem ganha bem.
Saí da escola em 1984, por conta da conclusão de meu Segundo Grau, sem conhecer a figura do coordenador pedagógico. Só comecei a ter o desprazer de conhecê-la - e jamais pude, na época, imaginar o grau de desprazer a que isso chegaria - exatos dez anos depois, quando, sabe-se lá por quais manobras do Destino, esse velho safado, peguei-me novamente em sala de aula, como professor, então.
A pessoa se apresentou a mim como tal, toda educada, cortês, boazinha e afável - todo canalha é educado, cortês, bonzinho e afável -, disse-me de suas funções de coordenadora para comigo e me deu até um papelzinho com suas atribuições por escrito :  I - acompanhar e avaliar o ensino e o processo de aprendizagem, bem como os resultados do desempenho dos alunos;II - atuar no sentido de tornar as ações de coordenação pedagógica espaço coletivo de construção permanente da prática docente;
III - assumir o trabalho de formação continuada, a partir do diagnóstico dos saberes dos professores para garantir situações de estudo e de reflexão sobre a prática pedagógica, estimulando os professores a investirem em seu desenvolvimento profissional; IV - assegurar a participação ativa de todos os professores do segmento/nível objeto da coordenação, garantindo a realização de um trabalho produtivo e integrador;
V - organizar e selecionar materiais adequados às diferentes situações de ensino e de aprendizagem;
VI - conhecer os recentes referenciais teóricos relativos aos processos de ensino e aprendizagem, para orientar os professores; VII - divulgar práticas inovadoras, incentivando o uso dos recursos tecnológicos disponíveis.
Nunca entendi patavina do idioma pedagogês, e nunca fiz questão de, e nunca farei. Mas  me pareceu que o tal professor coordenador fosse um aliado do docente, um amigo a ocupar um escalão mais alto dentro do território cada vez mais hostil em que se transformava a escola pública pós-ECA e pós-Progressão Continuada.
Mera ilusão de minha parte. Ingenuidade da mais vergonhosa, devo admitir. Nunca, nunca tive nenhum coordenador que desempenhasse minimamente o papel de aliado do docente. Todos, sem única exceção, ou por comodismo, ou por conveniência, ou por incompetência, ou pelos três motivos, uma vez que todo incompetente é conveniente acomodado, resumiram suas funções a uma única : vigiar o professor, e humilhá-lo sempre que possível.
O professor coordenador nada faz de pedagógico, ele é uma espécie de capitão do mato dos antigos senhores de escravos, e os escravos, desnecessário dizer, são os professores. Pior : o professor coordenador é aquele escravo que foi levado para mais perto de seu amo e senhor, é o escravo que foi levado a trabalhar dentro da Casa Grande, continua o mesmo bosta de escravo, mas a proximidade com quem detém o poder, com a mão que empunha o chicote, o faz se pensar também depositário desse poder.
O dono do chicote, vez ou outra, empresta o açoite ao coordenador, e ele se regozija, usa-o com enorme destreza contra quem era seu igual até ontem, chicoteia o escravo com mais prazer ainda que o próprio dono, como se chicoteasse sua própria condição anterior de escravo das senzalas, para afugentar de vez essa situação, para impedir a todo custo seu retorno a ela. O professor coordenador se esforça em mostrar que gosta menos dos escravos que o próprio senhor de escravos, para que o amo nunca o mande de volta à senzala, para que o mantenha sempre a lamber suas botas e seu saco.
Isso acontece porque os professores coordenadores foram um dia professores dos mais incapazes, professores totalmente incompetentes no domínio de uma sala de aula, seja por falta de conteúdo, seja por falta de pulso firme, de postura, ou o que seja. Os professores coordenadores são professores frustrados. Feito um crítico musical que desanca um bom disco, sem nunca, ele próprio, ter conseguido compor única melodia, por pura inveja; ou um crítico de cinema a dar uma só estrela a um filme, sem nunca ter conseguido escrever único roteiro, ou rodar única película.
O professor coordenador vê um bom professor e se irrita, morre de inveja da capacidade desse, capacidade que ele, um dia, quis ou julgou ter, mas descobriu-se um sem talento. Então, geralmente amigo de algum diretor ou de outro coordenador, ajeita uma mamata e se autopromove a coordenador. Daí para frente, lenha em quem tem o talento que ele não tem. Não à toa os professores coordenadores vivem a dizer que os professores não sabem avaliar, não sabem preparar aulas, não sabem isso, não sabem aquilo. Estão dizendo de si próprios, os canalhas, os traidores.
E uma ou duas vezes por semana, os coordenadores põem no tronco e chicoteiam seus professores, a sessão chibata ocorre nos tais HTPCs, reuniões de cunho falsamente pedagógico. Os HTPCs são os momentos em que o professor fica sabendo que todos os males da escola, quiçá do mundo, são de sua culpa e responsabilidade, são os momentos em que o professor é reduzido a menos que a merda do cavalo do bandido de filmes de faroeste.
Nos HTPCs, os coordenadores despejam todas as suas frustrações sobre o professor, despejam, como bem diria Lobão, a sua ira da frustração de não ter o próprio pau ereto. Grande Lobão.
E por que o governo coloca esse tipo de gente a liderar os professores? Um frustrado e incapaz não seria a pior espécie de lider possível? Claro que sim. Mas quem disse que o governo quer líderes para seus professores? Ele quer é vigias, punidores. E aí, o frustrado é a escolha perfeita.
O frustrado, imbuído de um pequeno poder, não lidera, apenas manda. Ele tem um poder circunstancial, o chicote emprestado, como bem diz o texto que logo reproduzirei.
Hoje, porém, vivemos tempos de politicamente correto, e a humilhação pública do professor não pode ser muito direta, muito contundente, ela tem que ser mais polida, mais subjetiva, mais canalha ainda. E para isso, para humilhar polidamente o professor, os coordenadores adoram se utilizar de pequenos textos, de pequenas fábulas com moral da história, usam-nas o tempo todo para mandar suas indiretas ao professor, suas farpas. Rubem Alves, Paulo Coelho, Gabriel Chalita, Paulo Freire etc são os autores que mais auxiliam o coordenador em seu acoitamento pedagógico.
Usando as mesmas armas que eles, reproduzirei - finalmente - abaixo um texto que trata muito bem dessa questão do chefe incapaz, que manda sem liderar, e, ao fim do texto, escrita pelo genial e imortal Millôr Fernandes, uma fábula moderna, O Rato Que Tem Medo.
A fábula se encaixa perfeitamente aos professores coordenadores de todo esse nosso Brasil, que já foi mais varonil.

"Um dos fundadores da sociologia, o economista alemão Max Weber, conceitua o poder como sendo toda a probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, obstante qualquer resistência e independentemente do fundamento dessa probabilidade.
Um dos exemplos mais simplórios e também um dos mais anacrônicos do exercício do poder está manifestado no membro administrativo de algumas corporações, com grau hierárquico executivo identificado simplesmente como “o chefe”.
“O chefe” é o personagem muitas vezes caricato que, encarnando o detentor de alguma forma de poder, tem muitas vezes seu grau de hierarquia oficializado por títulos sugestivos, tais como coordenador, gerente, diretor, supervisor, etc.
Independentemente do título, ser chefe é ter acesso privilegiado às informações e às decisões, e também a outros instrumentos administrativos que viabilizam o exercício desse poder, tais como a promoção e a demissão de seus subordinados, por exemplo.
No Brasil das corporações anacrônicas é comum se ouvir nos bastidores:
- O chefe tem sempre razão!
- Manda quem pode – e obedece quem tem juízo!
 E por aí vai.
 A infelicidade de tal prática, onde chefe é chefe e subordinado é subordinado (sendo a diferença muito nítida também no montante dos salários) geralmente está acompanhada pelo autoritarismo de uma parte e a subserviência da outra.
Talvez uma herança atávica do feudalismo, o exercício do micro poder diário das chefias nos convida a um questionamento filosófico também sobre o exercício diário da ética, que se traduz, na interpretação de muitos filósofos modernos, como sendo simplesmente o exercício da moral.
 Muitos chefes possuem um poder circunstancial. Mandam mas não lideram.
 E talvez por falta dessa mesma liderança ameacem, intimidem e se transmigrem amiúde na versão tragicômica de pequenos tiranos.
 Em síntese: um rato que ruge.
 E o que é pior, é que muitos desses chefes tiranos brotaram do plano comum de seus subordinados.
Quando então promovidos simplesmente “mudam de lado”.
 Talvez porque na maioria das corporações onde exista um chefe tirano, também existam subordinados que trabalhem direito apenas quando contam com uma “severa” supervisão.
 Flagra-se, portanto, a carência de moral, tanto de uma parte como de outra.
 Qual é a solução?
 Melhorando-se o subordinado, transformando-o em colaborador se melhoraria também a chefia?
 Ou trocando-se um chefe por um verdadeiro líder, a coisa toda mudaria de figura?
 Será?
Ou é do indivíduo que temos de falar – antes de mais nada?
 Para concluir este artigo e suscitar essa fabulosa reflexão – quero apresentar aqui minha releitura recorrente de uma das “Fábulas Fabulosas” de Millôr Fernandes:
  
“O rato que tem medo”
 A história é bem simples. Um rato que depois de muito sofrer pede para um grande mágico transformá-lo em um gato. Não suportava mais ser perseguido e intimidado.
 Nem bem foi transformado, ironicamente, passou a perseguir todos os ratos que encontrou. Porém, com inédita crueldade e efetiva precisão. Afinal conhecia com propriedade o modus operandi destrutivo dos ratos.
Viveu satisfeito até encontrar um cão – que então o persegue.
 Implora mais uma vez para que mágico o transforme, dessa vez em um cão, e assim, por efeito da magia vai subindo sucessivamente a escala zoológica até chegar na iminência de ser transformado em ser humano.
 Nessa passagem, o mágico, numa peripécia o transforma novamente num rato.
 - Mas por que voltei a ser rato?  – pergunta o animal, transbordando frustração.
 É com a sabedoria típica das fábulas que o Grande Mágico responde:
- De que adiantaria para o mundo mais um Homem com “coração de rato”!

Retirei o texto do excelente blog Hypescience. Desafio qualquer professor coordenador a usar essa fábula de Millôr em seus HTPCs.

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2 Comentários

  1. Bravo, bravo, bravo!!!
    Perfeito!
    Me sinto vingada!
    Posso publicar na caverna do facebook?
    ah, vc esqueceu de citar "Focault" quando escreveu sobre poder......kkkk

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    Respostas
    1. Gostou, né? Pode publicar à vontade, claro. Desculpe a nossa falha, na próxima citarei Focault, Platão, Rousseau, Nietzsche, e Paulo Coelho.

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