Pequeno Conto Noturno (29)

- Rubens! - chama Bruna com sua voz inconfundível - nem baixo nem soprano.
Rubens tem poucos amigos. Calil, que geralmente está preso por não pagar pensão alimentícia, ou fugindo para não ser, e Bruna, que aparece mais frequentemente, para tomar café ao fim de sua lida na noite, de seu expediente, lá pelas 5 ou 6 da manhã, nunca às duas horas como agora.
- Rubens! - Bruna, de novo.
Rubens abre a porta de entrada do prédio pelo interfone e vai à geladeira se munir de mais cerveja, Bruna bebe bem. Mal chega à sala e ouve a batida de Bruna à porta, batida firme, porém não grosseira - nem Mike Tyson nem Cinderela.
- Noite ruim? - Rubens abrindo a porta.
- Uma merda. A noite tá uma merda, eu tô uma merda, a clientela tá uma merda.
- Achei que você fosse querer uma - Rubens estendendo uma lata de cerveja para Bruna.
- Uma? Eu trouxe um fardo, Rubens, meu bem, mas nesta noite desgraçada nem cerveja gelada eu achei.
- Eu ponho no congelador e você vai bebendo da minha.
- E aí é que eu sempre me fodo, né? Você só compra da mais barata, a minha é decente.
Era verdade, Bruna havia trazido cerveja de boa procedência, porém sem ser afrescalhada - nem Antarctica nem Stella Artois.
- Sabe aquelas noites em que nada funciona? - Bruna já quase terminando a primeira lata e recebendo a segunda da mão do previdente Rubens - Pus um sapato que me aperta o pé, uma calcinha que parece arame farpado no meu rego, a maquiagem ficou parecendo o Bozo, e nem me barbear direito, eu me barbeei.
- Sim, sei como é. Tirando a parte do sapato, da calcinha e da maquiagem.
- Aí, quando um filho da puta quis pechinchar, eu desisti de trabalhar por hoje, declarei a noite uma merda total e vim pra cá.
- E, por acaso, o velho Rubens aqui tem cara de latrina?
- Você, até que não, mas seu apartamento... aqui não tem vaso de flor, não tem móveis, não tem quadros...
- Preciso de pouco, e também ganho pouco.
- Ajustou suas necessidades ao seu salário de fome?
- Não. Sempre precisei de pouco, minha profissão mal remunerada é compatível com isso, além disso, também trabalho pouco.
- E se precisasse de mais, do normal, mudaria de profissão?
- Não, não sei fazer porra nenhuma, se precisasse do "normal", viveria endividado, como a maioria.
- Como nada? Você faz o que faz, não? Leciona e coisa tal.
- É que minha profissão é uma das poucas, se não a única, que permite que incapazes a exerçam, de certa forma, sou mais puto que você.
- Não vem com essa, não. Eu sou muito da competente no que faço, muito da gostosa, e sou muito bem remunerada, Rubens, meu bem. E pega outra lata, que essa não deu nem pro cheiro.
Rubens volta com duas latas.
- Verdade, você é bem melhor paga do que eu, tanto que eu não poderia pagar para ir para cama com você.
- Ir para cama? Trepar, Rubens, trepar. Aliás, se você não fosse tão ortodoxo, tão caretão, hoje eu treparia de graça com você.
Bruna é um intermédio da natureza, um plano esquecido em meio à execução, a natureza a abandonou na fase de acabamento. Bruna nasceu Bruna e Bruno, rebento de Hermes e Afrodite; Hermes/corpo, Afrodite/alma. Mais que se desesperar com a indefinição, Bruna deu graças à chance de escolha, optou por ser Bruna.
- Esta sua oferta me faz concluir que você precisa muito mais de uma boa trepada do que eu.
- É...um bom aconchego, um braço feito em travesseiro, um fim de noite de carinho desinteressado...viriam bem a calhar.
Rubens engole em seco. E depois outra generosa talagada de cerveja.
Bruna é bonita, pensa Rubens, projetou bem o seu corpo, sem faltas nem excessos, peitos nem Pamela Anderson nem Carolina Ferraz. Ela tem as mãos pequenas, o pomo-de-adão mal se adivinha, e Rubens já pegou muita mulher com buços mais espessos que os esparsos pelos faciais de Bruna.
Rubens vai à cozinha e pega mais duas cervejas, agora as de Bruna, já geladas.
Entrega uma long neck a ela, que lhe sorri. Rubens sorri de volta.
E pouquíssimas mulheres, pondera Rubens, pediram-lhe o que Bruna acabou de : carinho desinteressado.
Com olhos de três da madrugada, Rubens olha Bruna e não vê mais nenhuma indefinição, nenhum entremeio.
Vê um belo corpo e muito afeto disponíveis.

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