O Inferno Não É Aqui : Mudou-Se Para Latitudes Mais Amenas

15 h. Inverno. O ar esfola narinas, lábios e ânimos. 40º C, medidos na estação experimental, fora da urbe; temperatura bem maior, sabe-se lá quanto, no coração do dragão, na cloaca da metróple, no beijo no asfalto.
15% de umidade relativa do ar, mal há lugar para o ar, uma massa coloidal branca toma conta da atmosfera e dos horizontes, um fantasma que veste lençol cancerígeno, um ectoplasma que não é nuvem, não é fumaça, não é vapor; é cortina plástica daquelas de chuveiro, mofada, de mau-gosto, a sufocar respirações.
As ruas, a cidade, não são mais lugar para gente. São para as crias tecnológicas das gentes. As cidades são berçários e playgrounds para as máquinas das gentes.
Tento atravessar uma avenida, não vejo outra pessoa em minha condição. Todos estão dentro de suas máquinas, todos estão enmaquinados. Parece que estou na Lua, todos estão isolados em suas roupas espaciais, suas roupas motorizadas de metal, plástico e hálito de fumante inveterado. Parece que estou na Lua, já que o ar parece me faltar. Atravessar a avenida será um insignificante passo para a humanidade, mas um gigantesco e milagroso passo para este homem.
Não há faixas de segurança, os semáforos piscando entre o verde, o amarelo e o vermelho são apenas precoces luzes de Natal. O tráfego é um único verme, longo e ininterrupto. Desvio-me dele, driblo-o, consigo transpor a avenida, talvez haja melhor ar na outra margem : não há.
Ladeira íngreme, uma subida quase anaeróbica; os olhos ardendo e o repuxar nas panturrilhas que se fodam, chego em casa.
Meus planos : uma chuveirada fria, sentar pelado no chão da sala, sob o ventilador em velocidade que faria decolar um fokker, e saborear um almoço fresco e frugal, uma salada de rúcula com pimentão amarelo, tabule, água com gás, gelatina para sobremesa; em seguida, uma rápida e mexicana siesta antes de reassumir minhas obrigações (e prazeres) paternais.
Que nada :  cozinha, área de serviço e sacada forradas por fuligem de queimadas de cana-de-açúcar, revestidas de cinzas de um carnaval sem Pierrot, sem Colombina, sem lança-perfume, sem máscara negra, cinzas que não se prestam a funerais nem à fênix, cinzas de um churrasco de carne de segunda regado a muito pagode e música baiana. Sorte teve Pompeia.
O ar, aquela bolha de ar que eu tinha guardado, feito um peixe Betta,  para quando chegasse em casa, também já havia se transformado em asma.
Sem o quê, limpo a casa, varro, socorro o chão com panos úmidos de algodão, dou de beber ao assoalho sequioso, dou uma chuva fina ao meu pé de boldo, e um laguinho entre ardósias para minhas gatas.
O apetite desapeteceu, o tempo, para a ligeira siesta , perdeu a hora.
Ligo num canal de notícias, saber sobre a previsão do tempo, mais esperançar do que propriamente saber. Nada de novo, quadro climático inerte para, no mínimo, as próximas duas semanas. Reportagem do programa sai às ruas, colher opiniões da população. Repórter idiota, porém gostosinha, abre o microfone ao populacho, revoltadíssimo. Alguém tem que fazer alguma coisa, brada o povo sem ar e sem água nas torneiras, isso não pode ficar assim, é um absurdo, todos pagam seus impostos e ninguém toma uma atitude.
Quem o povo espera que faça alguma coisa? O síndico, o prefeito, deus?
Ninguém pode fazer nada, seus filhos das putas. Foram vocês que desmataram os últimos resquícios de vegetação nativa em torno da cidade, foram vocês que transformaram a região num imenso mar de cana, quiçá maior que o de Sargaços.
Não é o usineiro quem queima a cana e põe lenço com clorofórmio nas fuças da cidade. São vocês, seus filhos das putas, que optaram por andar de carro em lugar de respirar. Ninguém pode fazer nada. Só vocês, e é aí que estamos mesmos fudidos. Vendam seus carros, passem a andar a pé, de bicicleta, de transporte urbano, de carroça puxada a jegue, ou seja, com autotração.
Vender o carro? Ir de bicicleta ao trabalho? Ir a pé ao supermercado da esquina?
Mais fácil rezar ao deus apache da chuva. Que bons cristãos, os brasileiros são, mas um sincretismozinho canalha e hipócrita vem bem a calhar na hora do aperto.
Chegará a hora, seus filhos das putas, em que terão de decidir entre passear com seus carros ou respirar, passear com seus carros ou beber água - será um decisão dificílima para muitos, muitos morrerão sufocados e desidratados antes de tomá-la.
O filho chega à casa e já se lança ao chão recém limpo, aos seus afazeres, às sua obrigações de criança sem obrigações, rola e ri. Nada sabe do tempo desértico, da névoa seca no ar, do aquecimento global, da escassez de água, de deuses apaches da chuva. E saber nada é de tudo o ele que necessita saber.
Olho-o, e começo até a respirar melhor.

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