Pequeno Conto Noturno (28)

Rubens chega em casa e o telefone está tocando. Como estava a tocar quando ele saiu. Saiu por isso. Para não ter que falar com Clarice. Sabia que era Clarice. Tinha certeza. Nem era questão de pretensão, que pretensioso é um dos poucos defeitos que não podem ser atribuídos a Rubens. É que ele mantém sempre um rol muito restrito de relações, um ou dois amigos, e, geralmente, uma mulher. Não dá conta de grandes círculos sociais, não lhe interessa, na verdade. Seus amigos nunca telefonam, logo...
Rubens atende.
- Até que enfim, hein?!? - Clarice, do outro lado - Liguei para deixar bem claro que nunca mais vou te ligar, que acho mesmo que nem mais te respeito ou admiro.
- Ligou para dizer que não ligará mais? - diz Rubens - Não seria muito mais fácil e convincente simplesmente não ligar? Em uma, duas semanas, eu já teria entendido.
- Por que demorou tanto pra atender? Faz umas duas horas que tô ligando.
- Saí, fui dar uma caminhada.
- Já está correndo atrás de buceta nova, é?
- Eu não corro atrás de bucetas, nunca corri. Só não me desvio delas. E elas estão voando por aí, aos montes, aos bandos.
Clarice ri.
- Você ainda me faz rir, mas não é um riso saudável nem prazeroso, não - esclarece Clarice - É um riso nervoso, catártico, sabe aquela coisa de catarse...
- Sei, sei - interrompe Rubens -, aquela coisa de catarse, do empírico, do apolíneo e do dionisíaco, do além do homem, e blá-blá-blá.
- Tá, tudo bem que eu tenha um vocabulário recorrente, mas...
- Repetitivo - interrompe Rubens, de novo.
- E foi minha repetição que te cansou?
- Toda repetição me cansa. Inclusive e principalmente a minha. Só que dela eu não tenho como fugir.
- Vai ver que é por isso que fica pulando de relação para relação. Como cada nova mulher lhe vê de um modo, é como se você não se repetisse, como se você se reinventasse a cada novo caso.
- É uma maneira de ver as coisas - diz Rubens -, com certeza, a que mais lhe convém, a que mais lhe consola, isenta-lhe de qualquer culpa ou responsabilidade pelo fracasso.
- Você é um filho da puta duma ave de rapina, preda a alma das pessoas, suas esperanças.
- Já fui mais, feito o carcará da canção. Hoje, eu até pego e mato, mas nem sempre como.
- Você é o pior tipo de canalha que há. Põe a mulher a seus pés, de pernas abertas, aí vira as costas e vai embora.
- Era só isso o que você tinha pra me falar? - Rubens querendo encerrar a conversa
- Era.
Silêncio nos telefones.
- Você já bebeu hoje? - torna a falar Clarice
- Vou começar agora, assim que desligar.
- Tem bastante bebida aí?
- Vinho. Três quartos de um garrafão, daqueles de cinco litros.
- Será que eu posso...
Rubens interrompe a ligação. Desliga o telefone.
Rubens dormirá embriagado de vinho; o telefone, fora do gancho; Clarice, pouco lhe importa.

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3 Comentários

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  2. Esse é o conto que mais curto, sempre venho aqui ler ele de tempos em tempos. Recordar é viver.

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